Crítica

A tarefa fácil não era. Juntar pedaços, formular hipóteses, reconstruir minimamente uma história que nos chega filtrada pelas ambiguidades dos espaços habitáveis pelo personagem-título, criar um plano e um contra plano para arregimentar esse discurso de “contradições” (qual política e qual filosofia não carrega essa sina, afinal?). É em torno de um caráter sintetizador - o que nem de longe pode ser confundido com o reducionismo mais comum que “mostrar” as coisas pela via do simplismo - que o filme de Jaime Lerner sobre Dyonélio Machado pretende organizar a pulverização dessas ideias tão “perigosas”. A obra de Lerner parece participar dessa aventura ao se colocar diante das dificuldades de apreensão do mundo (esse mundo cinematográfico que nos é tão caro e, ele também, perigoso), assumir seus próprios anseios e ainda algo de uma “jocosidade estética”.

Aqui e ali, imagens de Porto Alegre são acompanhadas pelas vozes de Déborah Finocchiaro e Leonardo Machado, que narram palavras diversas, ecos do próprio texto de Dyonélio, por ali entre os cantos e as ruelas de Os Ratos e O Louco do Cati. De quem observa o filme só exige a paciência e o silêncio. Pois é através de um interrogatório, medida que, paradoxal que seja, resulta num anticlímax tão capaz de envolver o espectador quanto de afastá-lo em função da forma um tanto maniqueísta com que o diálogo principal entre Dyonélio e seu interrogador se desenvolve. Ora as perguntas se constituem em “tautologias”, o que reflete em respostas já previamente configuradas pelo “jogo”, ora implicam uma reação mais austera do interrogado, jogando uma verve sutil e venenosa no mesmo fluxo, volta e meia desconcertando o interlocutor, o que funciona bem. É nesse âmbito de um suspense poético-político (das poesias e das políticas micro) que Dyonélio, filme nada “documental”, estabelece seu caminho, pois abraça precisamente todas as ficções possíveis e das impossíveis se alimenta pelo imaginário. Só pode existir mesmo em meio a contradições.

Se algo de Dyonélio já havia respingado com fôlego no filme de Fabiano de Souza (A Última Estrada da Praia, 2011) a partir do Louco do Cati, aqui Jaime Lerner estabelece um diálogo com alguns dos lugares que ambos os filmes compartilham, ampliando essa possibilidade de diálogo com o texto do escritor e com as imagens que criamos no percurso. Mas se no filme de Fabiano os personagens preenchem os espaços fisicamente, no clima mesmo do road-movie, o Dyonélio agora flui nas próprias imagens e através da narração que faz companhia. Se o primeiro é baseado em Dyonélio, o segundo é plenamente em torno dele. Evidentemente, tratam-se de estéticas distintas, de outras formas de olhar e narrar o sujeito. O personagem que surge no filme de Lerner é aquele de uma figura de firmezas, que não tergiversa. Aliás, é nesse sentido que cabe observar como a fala de Dyonélio trabalha em função da “construção” do próprio personagem.

A relação do questionador com o protagonista é o que vai mover as coisas, fazer com que algo surja em meio às negociações retóricas que acontecem e movimentam o imaginário em torno do escritor, político e ensaísta. Entre fragmentos de Norbertos e Naziazenos, atravessados pragmaticamente por um didatismo de alguns momentos nas conversas, aprofundado pela verve dos personagens noutros (daí um paradoxo da imagem cinematográfica), é nesse registro de ambiguidades que Dyonélio perfila seu sabor.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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