
Dormir de Olhos Abertos
-
Nele Wohlatz
-
Dormir de Olhos Abertos
-
2024
-
Argentina / Brasil / Alemanha / Taiwan
Crítica
Leitores
Sinopse
Em Dormir de Olhos Abertos, numa cidade litorânea do Brasil, Kai chega de Taiwan para passar as férias. Em uma busca cotidiana, ela conhece um grupo de trabalhadores chineses num arranha-céu luxuoso e se sente misteriosamente conectada com a história de um deles, Xiaoxin. Drama/Comédia.
Crítica
“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. O chavão de Tolstói é real e sempre fará sentido. Mas e quando a aldeia, neste caso, se perde pelo caminho e o mundo vira busca incessante por um lar? Dormir de Olhos Abertos reflete uma vivência íntima, na qual a realizadora alemã Nele Wohlatz, de O Futuro Perfeito (2016), tece uma rede de encontros de estrangeiros para questionar o quanto podemos nos adaptar ao espaço que nos envolve. Ou será que não? Precisamos de chão firme para chamar de nosso? Na proposta da diretora, que viveu mais de década na Argentina, talvez não haja respostas, mas é possível sentir cada detalhe, com a sensação de território em trânsito, onde o deslocamento nunca se esgota e o espectador acompanha essa suspensão. A câmera parece buscar o lugar que os personagens não encontram, estabelecendo ritmo que oscila entre contemplação e inquietude.
Na trama, ambientada em Recife, Kai é moça recém-chegada de Taiwan que tenta passar as férias enquanto lida com coração despedaçado. Ela cruza com trabalhadores chineses num arranha-céu de luxo e se conecta de modo inesperado à trajetória de Xiaoxin, jovem cuja história ecoa a sua. Essa travessia urbana desenha paisagem feita de desencontros, onde cada espaço carrega promessa de um vínculo que não se consolida. A cidade surge como território de passagem, no qual os afetos se insinuam, mas raramente se firmam.
Curioso notar que a produção, que tem Kleber Mendonça Filho entre os produtores, revela marcas semelhantes ao seu cinema. Assim como o premiado cineasta brasileiro, Nele não tem urgência em expor personagens ou conduzir resoluções. O silêncio se impõe como discurso, a ironia se manifesta no banal do cotidiano e os pequenos percalços empurram a aproximação entre desconhecidos. Vale dizer: há ecos de O Som ao Redor, com a opressão pairando como vigilância permanente. Mas diferente da empreitada de 2012, aqui, a metáfora se constrói no imigrante que jamais fecha os olhos por completo, como peixe sempre pronto a escapar de predadores. A imagem funciona como chave de leitura para compreender o modo como os protagonistas se relacionam com a cidade, constantemente em estado de alerta. O desconforto nunca se dissolve, e é justamente ele que dá consistência à experiência estética.
Dormir de Olhos Abertos é sensível ensaio sobre deslocamento e o viver com bagagens e transportá-las para território estrangeiro. Nada se ajusta de imediato e talvez nunca venha a se ajustar, sobretudo quando a condição se estabelece de maneira irregular, como ocorre com Kai e Xiaoxin. Ao mesmo tempo, esse gesto abre caminho para reflexões sofisticadas: pertencimento, estranheza, comunicação e saudade atravessam cada instante. Trata-se de jornada sensível, que ao olhar atento pode alterar a forma de perceber o mundo e, de certo modo, responder às indagações lançadas no início. Afinal, não será na própria fragilidade que repousa a essência de um lar? O desfecho não encerra ciclos, apenas nos convida a seguir questionando.
Últimos artigos deVictor Hugo Furtado (Ver Tudo)
- Pai do Ano - 17 de outubro de 2025
- Caramelo - 10 de outubro de 2025
- Coração de Lutador: The Smashing Machine - 8 de outubro de 2025
Deixe um comentário