Crítica

Pouco tempo depois de seu aclamado romance de estreia, Gente Pobre (1846), o russo Fiódor Dostoiévski publicou O Duplo, um livro incompreendido pela crítica da época, mas que o próprio autor considerava, nas palavras escritas em Diário de Um Escritor, sua “contribuição mais séria para a literatura”. O romance adaptado recentemente para o cinema pelo britânico Richard Ayoade em O Duplo (2013), e que também serviu de inspiração para outros longas, como Cisne Negro (2010), ganha uma nova versão com este Dois Rémi, Dois, de Pierre Léon. Mas diferente dos trabalhos de Ayoade e Darren Aronofsky, que exploram o lado mais sombrio da obra de Dostoiévski, Léon desenvolve sua premissa de modo muito mais leve e tomando diversas liberdades.

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É o caminho da comédia propriamente dita que o cineasta francês escolhe para contar a história de um homem comum preso a uma rotina desinteressante e a um trabalho burocrático, que repentinamente se depara com um duplo, uma versão melhorada de si mesmo, que passa a querer ocupar seu lugar. Este homem, na adaptação de Léon, é Rémi Pardon (Pascal Cervo), tímido funcionário de uma empresa de produtos para gatos, que mora em um pequeno apartamento com seu irmão, Philippe (Serge Bozon), e nutre uma paixão pela filha do patrão, a bela Delphine (Luna Picoli-Truffaut, neta do grande François Truffaut). Desde os créditos iniciais, apresentando uma série de simpáticas imagens de gatos, Léon deixa claro o tom aparentemente despretensioso e satírico de sua adaptação.

As camadas mais dramáticas e densas do texto de Dostoiésvski são abrandadas pela proposta cômica do diretor. Ainda que seja ciente e em determinados momentos pareça até se desculpar por sua insignificância – o trocadilho com o sobrenome (Pardon/perdão) é uma boa sacada – Rémi não chega a ser retratado como um ser totalmente invisível aos olhos da sociedade. É bem verdade que o patrão nunca lembra de seu nome, mas ainda assim Rémi consegue manter o mínimo de convívio social com outros personagens, como o irmão, a mãe ou até mesmo Delphine. O próprio antagonismo entre Rémi e seu duplo é menos latente aqui, já que apesar de apresentar uma maior habilidade para se relacionar com os colegas de trabalho ou de demonstrar seu interesse por Delphine, o duplo nunca chega a ser tão malicioso e nocivo quanto no original.

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Léon adota uma linha antinaturalista, na qual atuação de Pascal Cervo – ator acostumado a trabalhar com cineastas experimentalistas, como Paul Vecchiali – se encaixa perfeitamente. Cervo faz de Rémi não uma figura digna de pena, mas sim de afeto, mesmo que o próprio pense o contrário. Já como o duplo, o ator consegue se transformar e transmitir toda a ambiguidade do personagem. Na parte estética, em oposição à narrativa livre, Léon é muito mais rigoroso, compondo belíssimos planos através dos contrastes entre luz e sombras, entre as cores – ora azuladas, ora alaranjadas – e entre os ambientes noturnos e diurnos. Um ótimo exemplo deste trabalho apurado visualmente está na cena em que Rémi segue o duplo pela primeira vez, terminando com um encontro na porta de sua casa, onde o jogo de iluminação tem papel fundamental.

A trilha sonora quase minimalista – composta a partir de três notas, “dó, ré, mi”, em uma brincadeira com o nome do protagonista e com o título original – completa a criação da atmosfera de sutil paranoia e estranhamento do filme, reflexos dos conflitos de Rémi. Com todos estes elementos em mãos, Léon apresenta uma visão bem-humorada sobre as diferentes imagens de Rémi, e de todos os seres humanos: a imagem que fazemos de nós mesmos, a imagem que os outros fazem de nós e aquela que gostaríamos de ter. A luta de Rémi é exatamente para sair de seu estado de conformismo e encontrar sua verdadeira imagem. Por isso seu embate decisivo com o duplo é encenado teatralmente por Léon, como uma dança, pois o objetivo não é eliminar o oponente, mas sim se utilizar de seus movimentos (qualidades) para se tornar aquilo que deseja ser.

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Léon não se aprofunda totalmente nos desdobramentos psicológicos mais complexos da obra de Dostoiévski, mas consegue transmitir sua mensagem com domínio pleno da narrativa e extrema concisão. Concisão refletida na curta duração do filme e que também se transforma no derradeiro elemento de duplicidade de seu trabalho, podendo ser enxergada como defeito e virtude. Se por um lado fica a sensação de incompletude e de que algumas questões poderiam ser mais desenvolvidas, por outro fica evidente a competência do cineasta em atrair o interesse e fazer que se desejasse ver ainda mais do universo por ele apresentado.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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