Crítica

O tempo é um personagem importante em Direito de Amar, estreia do estilista Tom Ford na direção cinematográfica. Materializado em relógios de todos os tipos e tamanhos, ele não apenas molda e circunscreve a trama, mas, de certa forma, também interfere nela, revirando-a. O roteiro, escrito por Ford e David Scearce, é adaptado de um romance de Cristopher Isherwood. Mas, uma vez que vira cinema, faz do tempo um antagonista muito mais forte do que as forças simbólicas sugeridas pelo livro.

Após longas imagens de um corpo masculino submerso em água, o filme abre com George Falconer (Colin Firth, em uma de suas atuações mais marcantes) encontrando seu namorado, Jim (Matthew Goode) morto em um acidente de carro, no meio de uma tempestade de neve. Para nós, brasileiros, a cena ganha um subtexto ainda mais rico e faz lembrar Nelson Rodrigues (e, por sua vez, Bruno Barreto), quando George beija os lábios de Jim. Em seguida, o veremos em sua cama, a câmera no teto. O pesadelo se desfaz para lançá-lo em uma vida que perdeu o significado. Os luxuosos lençóis brancos são um sudário, manchado pela tinta de caneta que, em algum lugar onírico, talvez fosse sangue. E, mais uma vez, George deverá vestir-se de si mesmo e encarar uma vida na qual não vê significado.

A descrição dessa primeira cena parece crucial para se entender que é justamente este o tema de Direito de Amar. Ali, quando George acorda, já é possível ouvir o tic-tac dos relógios, charmosamente mais barulhentos em 1962, quando o filme se passa. Desde então, já é possível entender o quão sozinho o protagonista se sente, não apenas por ter perdido seu amor, mas também por não pertencer a nenhum grupo social. Como em Ulysses ou Mrs. Dalloway, acompanharemos os passos de George durante este dia (e em alguns outros, por meio de flashbacks), que poderia ser um qualquer, exceto pelo fato de que mudará para sempre a vida do nosso dileto personagem. Ele tomou uma decisão. E ela não tem nada a ver com comprar as flores...

A plasticidade do filme, que conta com design de produção, figurino e fotografia luxuosos, é algo que se poderia esperar de um estilista que se consagrou por sua elegância, especialmente à frente de marcas de luxo, como a Gucci. Há quem argumente que isso dá ao filme um ar artificial e de “comercial de perfume” diversas vezes, o que não deixa de ser verdade. A surpresa, portanto, é notar que, por baixo desse verniz elegante pulsam emoções reais, humanas e, vale lembrar, nem tão bonitas assim. Isso pode ser observado, por exemplo, na escolha de Ford por filmar o momento em que George recebe a notícia da morte do namorado em um plano sequência, fechado, deixando com que vejamos o rosto do protagonista – elegante e bem penteado – ir se desmontando, sem poder, no entanto, extravasar toda a emoção para o interlocutor do outro lado da linha.

O mesmo ocorre com seu figurino. George nos diz, logo no começo, que leva tempo para que ele “se torne George” todas as manhãs. O impecável professor universitário, que sai de casa num terno elegante e lencinho na lapela , irá então se desnudando de suas roupas elegantes – assim como de algumas de suas crenças e valores – até se tornar, apenas, humano, no sentido biológico. A single man, como sugere o título original. É interessante notar que a tradução é dúbia: ao mesmo tempo em que pode querer dizer “um homem solteiro”, também pode significar “apenas um homem” ou “um homem singular”. George vai deixando de ser George ao longo do dia porque vai se tornando um homem que também é todos os outros. E é por isso que não se trata de um “filme gay”, se é que existe tal gênero.

Captar essa universalidade é o grande trunfo de Ford, que, para explicitá-la, coloca-a contra o tempo, fazendo dele seu antagonista. Com um estilo que lembra muito Wong Kar-Wai, seja pelo primor fotográfico, seja por sua relação com o tempo (um dos filmes mais tradicionais de Wong se chama, justamente Cinzas do Passado – ou Ashes of time, 1994, que poderia ser traduzido também como “cinzas do tempo”), ambos parecem interessados em colocar o humano num plano existencialista. Dão à realidade uma roupagem excessivamente bela para contrastar com seus personagens, que perecem nesse meio. Uma opção louvável para alguém que, a princípio, vive, justamente, de vestir a realidade para o tapete vermelho, como é o caso de Ford.

Aliás, a biografia do diretor e estilista pode surpreender: Ford vive há mais de vinte anos com seu marido, Richard Buckley. Antes um belo e influente editor de revistas de moda, Buckley teve um raro tipo de câncer, ao qual quase não sobreviveu e que consumiu muito de sua beleza física. Ford foi essencial para a recuperação do namorado e hoje os dois moram num rancho, no interior do Novo México, EUA. Assim, não fica difícil entender como, ao assumir a direção do longa, Ford teve um entendimento especial da condição de alguém que perde a pessoa amada.

Há também uma clara confiança em Colin Firth, que recebeu uma indicação ao Oscar por sua atuação. São muitos planos fechados e solilóquios, muitas cenas dramaticamente intensas – mas não histriônicas – e uma trama que gira quase exclusivamente em torno de um único (“single”) personagem.

Outra característica interessante do longa é seu universo de referências. Num exercício semelhante ao feito por Lee Daniels em Preciosa (2009), a trama acaba povoada por um imaginário muito específico de seus personagens, num interessante jogo expressionista. Há um garoto de programa que tem qualquer coisa de James Dean e Marlon Brando em sua época de ouro. Há uma aluna que parece um clone de Brigitte Bardot. Observam-se cenas que parecem saídas dos desenhos de Tom of Finland num jogo de tênis, ou num bar frequentado por marinheiros. E há uma citação dupla de Almodóvar e Hitchcock, num cenário que possui um cartaz gigante de Psicose (1960) e que reproduz uma locação de Tudo Sobre Minha Mãe (1999).

Ford também usa a fotografia para sinalizar mudanças no espírito de seu protagonista, infusionando vermelho na paleta cinzenta do filme sempre que, por qualquer motivo, George parece se sentir mais vivo. Um recurso que, embora seja um pouco óbvio do ponto de vista narrativo, deleita os sentidos do ponto de vista estético.

Juliane Moore é outra que merece ser lembrada. Interpretando Charlotte, uma amiga de George, mostra-se como um contraponto feminino do protagonista. “A single woman”, por assim, dizer. E responsável, a seu modo, por puxar um dos vários gatilhos que levarão a trama ao seu ponto final.

Ponto este onde George, finalmente, tem um irônico encontro com o (seu) tempo, com quem vinha flertando ao longo do filme por meio das lembranças de seu amado, do contato com os vizinhos, em conversas com a amiga. Tchekhov um dia postulou o que muitos roteiristas e escritores seguem religiosamente: que se uma arma aparece em cena, então ela deverá ser disparada no terceiro ato (ou mesmo antes). A forma não literal como Ford encara esse postulado dá a Direito de Amar seu brilho final, ao apertar um gatilho que troca o estampido de um revólver por um tic-tac final, seco e, como a vida de milhares de Georges, invisível e silencioso.

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é jornalista, mestre em Estética, Redes e Tecnocultura e otaku de cinema. Deu um jeito de levar o audiovisual para a Comunicação Interna, sua ocupação principal, e se diverte enquanto apresenta a linguagem das telonas para o mundo corporativo. Adora tudo quanto é tipo de filme, mas nem todo tipo de diretor.
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