Crítica


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Sinopse

Giselle questiona a sua felicidade depois do "felizes para sempre". De mudança com sua nova família para o subúrbio, ela faz um pedido para transformar tudo num conto de fadas. Mas, nessas histórias também há vilões.

Crítica

A palavra “madrasta” é geralmente pejorativa nos contos de fadas. Neles, muitas são as vilãs icônicas tocando o terror em suas respectivas enteadas, as jovens oprimidas com vocação para serem princesas. Portanto, megeras vilanescas que fazem de tudo para impedir as felicidades (merecidas) das mocinhas puras de coração. Em Desencantada, sequência de Encantada (2007), nos deparamos com a protagonista Giselle (Amy Adams) prestes a começar um capítulo de sua vida na mundana terra dos Estados Unidos. Confrontada pela rotina que coloca em xeque o conceito romântico por excelência do “felizes para sempre”, ela resolve se mudar com a família para o subúrbio. Uma região onde tudo parece menos agitado e avesso ao caos cosmopolita. Para começo de conversa, a insatisfação com o dia a dia doméstico não é mais do que citada pelo esquilo aos seus filhotes – sim, tudo o que vemos é um conto da carochinha transmitido aos pequenos bichinhos que ouvem com atenção. O roteiro assinado por Brigitte Hales não prevê um antagonismo tão grande entre a hábito e os ideais da princesa de Andalasia. Portanto, não há um investimento efetivo nesse contraste entre a fantasia e a realidade. Dito isso, fato é que a chegada ao novo lar traz de volta velhos/conhecidos personagens e apresenta outros que desempenharão funções importantes nesse filme que poderia abusar mais da metalinguagem.

Excetuando os distrativos (e são muitos), Desencantada é sobre como os laços sanguíneos não são tão importantes assim. Giselle tem uma dificuldade de comunicação com Morgan (Gabriella Baldacchino), a enteada passando pelas turbulências costumeiras da adolescência. O cineasta Adam Shankman queima etapas intermediárias na construção dessa tensão entre madrasta e enteada, resumindo tudo ao choque entre o excesso de positividade de uma e as turbulências hormonais/geracionais da outra. Quando tinha feito Encantada, Amy Adams não passava de um talento promissor. Muita coisa mudou de lá para cá. Ela se tornou uma estrela de reconhecido brilho por conta de vários papeis dramáticos. Então, esse longa-metragem marca o reencontro afetivo com uma personagem leve que ajudou a alavancar a sua carreira. E ela não deixa a desejar ao reencontrar Giselle. No começo, a protagonista chega a ser irritante com seu excesso de felicidade e sua mania de cantar sempre que preciso expressar algo mais emocional. Não espere mergulhos mais do que superficiais na personalidade radiante dessa figura que remonta diretamente ao nosso imaginário alimentado pelos contos de fadas. Tampouco espere atenção às nuances das dicotomias (realidade/fábula, mãe/filha, maldade/bondade). A promessa inicial de que veríamos uma princesa cujo idealismo é desmontado não dura mais que alguns minutos.

Desencantada “enche linguiça” até tudo virar um conto de fadas novamente, mas com toques de pesadelo. A insatisfação de Robert (Patrick Dempsey) com a mudança funciona apenas como um breve agravante, nada mais – o que faz as suas reflexões solitárias perderem qualquer importância. A nova vizinhança somente se torna interessante no longa-metragem quando Giselle faz literalmente um pedido para sua vida se tornar novamente um conto de fadas. Aliás, assim que esse ponto de virada acontece, cresce outro talento maiúsculo escalado para essa sequência. Maya Rudolph passa a interpretar deliciosamente a bruxa má claramente tipificada, uma das melhores sacadas desse filme sustentado por poucos momentos em que um par de ideias realmente inspiradas ganha espaço para florescer. Esqueça Robert, que continua sendo praticamente inútil ao procurar aventuras com sua espada. Poderíamos estar diante de uma subversão da ideia do príncipe que salva o dia? Sem dúvida, mas o roteiro opta por não enfatizar isso, simplesmente dando um par de cenas para Patrick Dempsey não desaparecer totalmente de cena. E toda a história desse tipo precisa de uma madrasta carrasca, não é mesmo? E é aí que o filme ganha um fôlego extra, ao permitir que Amy Adams demonstre toda a sua versatilidade ao transitar entre a Giselle boazinha e a sua cada vez mais impositiva e cruel versão maléfica.

Desencantada cresce nos instantes em que o elenco respira em meio a tantos desperdícios. A melhor cena do filme é o embate musical entre as malvadas favoritas vividas por Amy Adams e Maya Rudolph, interação que anuncia a impossibilidade da convivência. Não pode haver duas vilãs nos contos de fadas. Ao esgotar rapidamente esse repertório de elementos positivos e as bem-vindas menções metalinguísticas – como o esquilo virando o gato do mal, a gata borralheira impedida de ir ao baile, a dupla de ajudantes da vilã, as personagens transformadas em sapos, príncipes e princesas altivos –, o filme fica meio à deriva enquanto aponta para essa ideia anteriormente mencionada de que os laços sanguíneos não são assim tão importantes. A magia do amor conecta tudo, resolve os problemas num piscar de olhos e o dia é salvo quando tudo parecia inevitavelmente trágico. E antes que o leitor xingue o autor desse texto por antecipar pontos cruciais da resolução, é preciso sinalizar que a aderência consciente aos clichês desse tipo de história não deixa qualquer margem para dúvidas quanto ao teor do clímax. Desde o início. Curiosamente, mesmo que defenda a ideia de que “mãe é aquela que cria”, sendo o afeto o maior dos elos e não o sangue, o filme continua criminalizando a palavra “madrasta”. No fim das contas, embalada por canções açucaradas e coreografias esquecíveis, a trajetória dos personagens serve somente para Morgan aprender lições e voltar a chamar Giselle de mãe. Só.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
5
Francisco Carbone
4
MÉDIA
4.5

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