Crítica

Fusi (Gunnar Jónsson) é uma figura singular. Com seu corpanzil, chama mais atenção do que gostaria, afinal de contas é tímido e tem óbvias dificuldades para interagir. Mesmo na casa dos 40 anos, ele ainda mora com a mãe. Seus dias se dão entre o emprego no setor de despacho de malas no aeroporto e o interesse pelas coisas da Segunda Guerra Mundial, principalmente maquetes e o jogo compartilhado com o amigo que parece ser o único. O protagonista de Desajustados é aquele tipo de personagem por quem desenvolvemos simpatia imediata, aqui primeiro porque nos apiedamos do extremo desconforto que ele expressa por ter de desempenhar determinadas funções cotidianas ou atender a certas expectativas. Adulto que cultiva paixão por brinquedos, homem sem ao menos namorada, ele é uma espécie de nota dissonante e, bem por isso, desperta sentimentos diversos nos que o rodeiam.

No trabalho, Fusi é hostilizado gratuitamente pelos colegas. As tentativas de estabelecer laços são geralmente infrutíferas ou acabam em adversidade, como, por exemplo, a amizade com menina de oito anos que quase lhe mete em apuros com a polícia. Aos poucos, porém, o diretor Dagur Kari inteligentemente mostra que o problema não é a inadequação desse homem, mas sim o cenário essencialmente cínico. Isso fica evidente quando ele decide, forçando sua natureza introspectiva, participar das aulas de dança country e se aproximar de Sjöfn (Ilmur Kristjánsdóttir), a amante de flores que lhe é simpática. Mais adiante, frente ao estado depressivo dela, Fusi demonstra uma bondade incomum, algo que o coloca num patamar diferente e deflagra a natureza de seu desajuste. Ele destoa por pensar antes no outro, depois em si próprio, ainda que externe anseios particulares.

Em Desajustados, então, Kari subverte de maneira perspicaz a ideia construída inicialmente, a de que Fusi tem uma vida ligeiramente infeliz por conta de suas incapacidades, mostrando justamente o contrário, ou seja, que o entorno, as pessoas e as relações instituídas é que estabelecem a fratura. Por essa perspectiva, o altruísmo é um verdadeiro ato de resistência, em virtude do qual invariavelmente se paga alto preço, porque o mundo relega muitas vezes a generosidade à condição de falha. Alguns momentos são especialmente bonitos, sobretudo por conta da sutileza com que expõem a insuspeita bravura de Fusi, como quando ele liga para o radialista a fim de pedir a execução da música favorita da mulher por quem está se afeiçoando. Praticamente onipresente em cena, o ator Gunnar Jónsson é responsável por boa parte do êxito do longa-metragem, já que sua interpretação dá o tom às demais.

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A grande sacada do roteiro é mudar paulatinamente, sem a necessidade de pontos muito marcados de virada, nossa perspectiva a respeito do comportamento de Fusi. Ao contrário do que pensávamos, não lhe falta coragem para tomar iniciativas, mas situações que ele julga valerem à pena. Indício disso, a recusa do sexo com a prostituta não é medo de perder a virgindade, como se constata posteriormente. Desajustados guarda suas significâncias mais importantes nas entrelinhas, no espaço além das aparências e dos efeitos colaterais imediatos. Outro grande mérito da realização de Dagur Kari é dissipar gradativamente os estereótipos, dificultando, assim, possíveis julgamentos. Mesmo as atitudes ofensivas à Fusi, ainda que obviamente reprováveis, são vistas sob o prisma da falibilidade que nivela todos. É um filme singelo que se destaca pela abordagem sensível e pelo carisma do protagonista.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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