Crítica

A cena que de certa maneira sintetiza o ideário de Demônio de Neon é a do primeiro encontro entre a modelo novata Jesse (Elle Fanning) e a tarimbada maquiadora Ruby (Jena Malone). A interação ocorre por meio de reflexos nos espelhos dos bastidores, com elas nem se dando ao trabalho de manter um contato direto, afinal de contas, naquele universo bastante singular o que importa são as aparências projetadas. A jovem interiorana possui uma beleza inata, atributo que, acrescido da inocência ausente em suas colegas já irremediavelmente imersas no lamaçal de uma realidade pervertida para soar perfeita, faz dela um espécime absolutamente raro. O diretor Nicolas Winding Refn impõe a constância de um estranhamento que serve para mediar a relação do espectador com esse entorno fashion, cuja fauna ora excêntrica, ora assustadora é constituída de gente moldada para ler a vida por um prisma disforme. A noção de certo ou errado é no mínimo turva quando as pessoas priorizam a notoriedade, ansiando pela luz dos holofotes que destacam somente os que aceitam as regras do jogo.

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Refn propõe imersão radical num mundo hiper-real, estilizado, multicolorido e, ainda assim, sombrio. Jesse encanta por ser autêntica, portanto única. Sua castidade simbólica colide constantemente com o relativismo moral/ético das demais. A pureza é seguidamente ameaçada de extinção pelas tentações, inclusive as aceitas a partir de determinado momento. O perigo que a protagonista representa ao sistema, bem como aos agentes que nele e dele se alimentam, é maiúsculo. Corrompê-la, tornando-a mais uma entre tantas, vira, então, questão de autopreservação. Esse sintoma impulsiona subterraneamente a narrativa que recorre com inteligência a excessos pontuais para demarcar pontos de vista. Fanning expressa muito bem a inadequação inicial de sua personagem diante das outras meninas, elas assimiladas, totalmente corroídas pelos ditames do espaço em que desesperadamente querem estar com proeminência. Demônio de Neon, em alguns sentidos, lembra Showgirls (1995), do holandês Paul Verhoeven, tendo, inclusive, potencial similar para polarizar opiniões. Improvável é ficar impassível.

Sequências prodigiosas, como a do vislumbre efêmero das silhuetas numa performance, ou a da festa em que Jesse começa, de fato, a penetrar na realidade aparentemente incompatível com sua personalidade, expõem o amplo domínio cinematográfico de Nicolas Winding Refn. O diretor não se furta de correr riscos e até mesmo de cruzar certas fronteiras consideradas facilmente tabus. Exemplo disso, a deserotização oriunda da sensação predominante de vazio, algo que alcança resultados impressionantes na satisfação sexual extremamente insólita de Ruby enquanto ela projeta num corpo inanimado sua idealização da lascívia de Jesse. Na medida em que a trama avança, o horror, antes apenas insinuante pelas frestas, se agiganta até praticamente tomar as rédeas do filme. A protagonista passa por um batismo místico que a transforma, pois cria elos com os vieses espúrios da vocação. Essa liturgia que antecede a entrada dela numa das passarelas mais cobiçadas pelas aspirantes ao estrelato se dá na tênue fronteira entre o delírio e a distorção, algo que Refn encena com maestria.

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A crítica ao cultivo de valores superficiais e à falsa sensação de plenitude frente às belezas fabricadas preenche o longa-metragem de relevância no plano do conteúdo. Suas muitas qualidades formais, ou seja, estritamente no que tange ao cinema enquanto linguagem, também saltam aos olhos. Os coadjuvantes servem a Jesse, primeiro, como portais às múltiplas dimensões do cenário extravagante e competitivo ao qual ela se candidata, e, segundo, como sintomas de suas fragilidades. Nicolas Winding Refn nos conduz por um percurso hipnótico, repleto de instantes aparentemente aleatórios, mas que, na verdade, se encarregam de deflagrar instabilidade, vide as participações de Keanu Reeves e, sobremaneira, a sequência do intruso selvagem no quarto da menina que, àquela altura, ainda permanecia “virgem”. Demônio de Neon é uma experiência sensorialmente rica. Refn mantém a coragem e a inventividade até o fim, vide a antropofagia que unifica as chaves literal e metafórica, um encerramento adequadamente violento para este filme notável.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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