Crítica

Palavras são o que movem o renomado autor israelense Amos Oz, que, entre best-sellers internacionais, publicou o livro de memórias Um Conto de Amor e Trevas. Sua relação com as palavras provém de seu pai, também escritor, que buscava na morfologia de cada vocábulo significados ocultos ou esquecidos e, assim, criar sentidos maiores que aqueles perceptíveis pelos termos apenas escritos ou enunciados. Em sua estreia como diretora em longa-metragem, Natalie Portman leva à literalidade neste compromisso com as palavras de Oz, traduzidas pela linguagem cinematográfica do tocante drama De Amor e Trevas (2015).

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Às vésperas do nascimento do Estado de Israel a partir de sua independência, o pequeno Amos, de oito anos, observa as tensões de sua família e de todos aqueles ao seu redor; os conflitos inflamados entre árabes e judeus pontuam quaisquer relações, ritmadas pelo barulho de bombas, tiros disparados por anônimos e até mesmo em um acidente numa brincadeira entre crianças. Para o garoto, no entanto, a maior tragédia está na depressão que acomete sua mãe aos poucos, que logo deixa de contar as histórias que embalavam sua imaginação e a cada dia perde um pouco do brilho que ofuscava as verdadeiras desgraças ao seu redor.

Quando a guerra iminente acontece, ela é vista pelos olhos de uma criança e exclusivamente pela perspectiva judaica: não há espaço para duvidar que os árabes são os agressores e que o povo judaico, mesmo após as brutalidades do holocausto, ainda sofreria as consequências e incompreensões de sua ideologia cultural e religiosa. Portman, nascida em Israel e muito politizada, reitera no filme o posicionamento de Oz em seu romance a partir da ambiguidade de seus pais. Enquanto o pai Arieh mantinha um sentimento extremo nacionalista, a mãe Fania premeditava temerosa o futuro de uma Israel fragmentada por violência e incertezas morais. O discurso do filme parece otimista em sua conclusão, quando o jovem Amos surge triunfante como o pioneiro lutador que preenchia as fantasias de sua mãe, mas sua fala contradiz qualquer ponta de esperança: “um sonho realizado é um sonho de desapontamento”, ele diz para seu pai.

Ainda que De Amor e Trevas pareça direcionar seu ponto central para o pequeno Amos, é Fania, sua mãe, quem move toda a narrativa e mantém a carga dramática do enredo. Portman também tem em suas mãos esta delicada personagem, e apresenta uma performance contida e majestosa, resplandecente mesmo nos momentos mais difíceis. Ao lado de Gilad Kahana e Amir Tessler, respectivamente Arieh e Amos, Portman concebe momentos belíssimos em interpretações também marcadas pelo hebraico que preenche quase todos os diálogos – algo que certamente dificultou a entrada do filme em mercados como o norte-americano, onde ele ainda sequer estreou.

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Distante da pretensão comum de atores que se tornam diretores, geralmente interessados em roteiros desenvolvidos essencialmente para enaltecer seu elenco, Portman guia De Amor e Trevas com o olhar assertivo de alguém que ainda não domina a arte de fazer cinema, mas está disposta a arriscar. Aliada ao fotógrafo polonês Slawomir Idziak, ela compõe quadros com uma plasticidade pungente, num registro esmaecido e etéreo, como o universo frágil de seus personagens. Seu maior mérito é justamente o de traduzir as páginas de memórias de Oz em planos, enquadramentos e outras técnicas da escrita feita pela câmera, numa abordagem séria e interessante sobre Israel. Seu retrato repleto de nuances respeita e critica o lugar pelo qual ela se sente conectada, comprometida, e que permanece como seu lar. É uma estreia emotiva e emocional, mais do que promissora.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Graduado em Publicidade e Propaganda, coordena a Unidade de Cinema e Vídeo de Caxias do Sul, programa a Sala de Cinema Ulysses Geremia e integra a Comissão de Cinema e Vídeo do Financiarte.
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