Crítica


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Sinopse

Martha e Alex formam um casal em crise: ela é uma blogueira de pouca credibilidade, e ele, um ator desempregado. Durante uma viagem de carro pelo interior do país, discutem os rumos do relacionamento. Quando acidentalmente atropelam um cachorro na estrada, a jornada começa a tomar rumos cada vez mais absurdos.

Crítica

Aos fãs de comédias populares, Criaturas Ordinárias (2020) oferece um tipo estranhíssimo de humor - pelo menos para os padrões brasileiros. Primeiro, porque o diretor e roteirista Thomas Marschall demonstra certo desprezo pelos próprios personagens. Martha (Anna Mendelssohn) e Alex (Joep van der Geest) são jovens adultos hipsters, de comportamento egocêntrico e dotados de um posicionamento um tanto equivocado sobre a política e a sociedade. “A esquerda não é necessariamente o oposto da direita”, argumenta o ator fracassado e desempregado. "Hitler era progressista. Stalin era progressista”, completa. O principal alvo do roteiro se encontra na juventude descolada, cuja aparência intelectual busca encobrir a vacuidade do discurso. Em outras palavras, uma esquerda de lacração, repleta de frases de efeito sobre o apoio às minorias, porém sem convicção nem aplicabilidade prática às teorias. “Isso é conservador?”, perguntam ambos, em diversos momentos, preocupados com a possibilidade de estarem adotando atitudes comuns ao campo oposto. Trata-se de uma ideologia de fachada, esvaziada de sentido, e apropriada à era das redes sociais e da militância de sofá. O autor evita ridicularizar o casal, porém sublinha a inconsistência de seu pensamento, assim como o aspecto inútil das conversas pseudofilosóficas.

Segundo, a narrativa se desenvolve de acordo com um ritmo e estrutura raros, onde uma cena não necessariamente serve de causa ou consequência à cena seguinte. Isso significa que os pequenos conflitos se sucedem de maneira relativamente autônoma, próxima de uma comédia de esquetes - seria possível remontar as interações em ordens distintas, preservando a coerência do percurso. Para além de simples saltos temporais, a associação livre permite que os blocos se articulem sem real determinação de tempo: jamais sabemos a duração deste passeio, seu objetivo, ou o período exato em que ocorre. O tipo de humor se alterna bruscamente entre a escatologia (Alex retira sujeira do nariz e come), o humor físico e histérico (a dona do carro arranhado na garagem), de desconforto (a presença da garota Eva dentro do carro) e situacional (os gemidos do sexo no carro à distância). Diversos produtores experientes tentariam direcionar o texto para um tipo único de comicidade, porém o longa-metragem austríaco faz da desconexão entre suas partes uma fonte inesperada de humor. O espectador é convidado a rir pela dificuldade em antecipar ou acompanhar os fatos - ou seja, rimos porque o discurso provoca estranhamento, ao invés de imersão.

Em paralelo, o roteiro busca metáforas para relacionar a irracionalidade dos bichos ao lado grotesco dos seres humanos: à medida que Alex e Martha se eximem de culpa por terem atropelado um cachorro, a montagem insere cenas de insetos se arrastando pelo solo, rastejando em plantas. Adiante, duas línguas humanas se beijam em câmera lenta, em plano tão próximo que o ato remete ao movimento das lesmas. O caráter viscoso, os fluidos e secreções colocam em pé de igualdade os seres humanos e os animais irracionais, ambos agindo segundo princípios de sobrevivência e autopreservação. Por trás da escapada sem rumo do casal, nota-se um aspecto sombrio mantido em segundo plano, pelo menos até o desfecho. Esta escolha serve a  equilibrar o tom: a cada atitude engraçada dos viajantes, descobrimos a presença de um homem armado e escondido, mirando os protagonistas. Quem estaria seguindo os dois? Com qual objetivo? O recurso do possível atirador se transforma em chacota, pois incapaz de imprimir tensão - é fácil se esquecer dele durante parte considerável do percurso. Entretanto, ele acena à possibilidade de uma conclusão desfavorável aos protagonistas.

O jogo descompromissado de fragmentação narrativa beira a aleatoriedade: alguns recursos são empregados a esmo porque o autor estima que possui o direito e a liberdade de seguir por qualquer caminho desejado, sem dar justificativas ao espectador. É possível que Marschall se divirta mais do que o público com a narrativa autoindulgente. A inserção da garota hippie, que entra na trama e desaparece dela com a mesma rapidez; a imagem de uma garçonete apática e as sequências no quarto de hotel criam a percepção de um mundo sem sentido, onde todos são igualmente imprevisíveis. Ao contrário de inúmeros feel good movies e road movies onde os protagonistas esquisitos habitam um universo banal, neste caso o comportamento cartunesco atinge a integralidade dos personagens. Criaturas Ordinárias investe no realismo fantástico, com acenos discretos à fisicalidade do cinema de Jacques Tati, e à artificialidade coreografada do trio de clowns Fiona Gordon, Dominique Abel e Bruno Romy. O decalque em relação ao real serve como objetivo em si, retoricamente: a obra se valoriza por fugir às normas esperadas, tornando secundário aquilo que teria a propor no lugar das convenções. O cineasta demonstra maior prazer em destruir as bases do que em construir algo sobre os escombros.

Ressalvas à parte, o projeto ganha força na reta final, quando se revela corajoso o bastante para propor um desfecho violento e possivelmente impopular. Neste momento, a leveza do conjunto se reveste de uma aparência sombria, na fronteira do suspense. A trilha sonora ironicamente carinhosa traz uma canção com a seguinte letra: “Na minha cabeça, você já era”. Se havia esperança de encontrar uma recompensa emocional ao término, ela desaparece com a conclusão brutal. Entre todas as estranhezas da produção austríaca, a principal delas reside na escolha deliberada de virar as costas ao espectador. Comédias populares costumam se esforçar até demais para oferecerem aquilo que imaginam provocar o riso e a sensação de contentamento. Marschall nada em caminho oposto, apresentando uma história que se desenvolve apesar dos espectadores. Nunca compreendemos a fundo as motivações dos protagonistas, os motivos para ignorarem o crime cometido, a origem da crise entre eles. Acompanhamos um processo em andamento, na condição de voyeurs, ou espiões - a história jamais foi feita para nós. Talvez este elemento justifique a impressão de frieza, reforçada pelas atitudes blasés de Martha e Alex. Recebemos as peças de um quebra-cabeças desmontado, exigindo certo esforço nosso para ordená-las. Resta saber quantos espectadores aceitarão entrar na brincadeira.

Filme visto online no 12º Cinefantasy, em setembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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