Criaturas Ordinárias

16 ANOS 75 minutos
Direção:
Título original: Ordinary Creatures
Gênero: Comédia
Ano: 1020
País de origem: Áustria

Crítica

7

Leitores

Sinopse

Martha e Alex formam um casal em crise: ela é uma blogueira de pouca credibilidade, e ele, um ator desempregado. Durante uma viagem de carro pelo interior do país, discutem os rumos do relacionamento. Quando acidentalmente atropelam um cachorro na estrada, a jornada começa a tomar rumos cada vez mais absurdos.

Crítica

Aos fãs de comédias populares, Criaturas Ordinárias (2020) oferece um tipo estranhíssimo de humor – pelo menos para os padrões brasileiros. Primeiro, porque o diretor e roteirista Thomas Marschall demonstra certo desprezo pelos próprios personagens. Martha (Anna Mendelssohn) e Alex (Joep van der Geest) são jovens adultos hipsters, de comportamento egocêntrico e dotados de um posicionamento um tanto equivocado sobre a política e a sociedade. “A esquerda não é necessariamente o oposto da direita”, argumenta o ator fracassado e desempregado. “Hitler era progressista. Stalin era progressista”, completa. O principal alvo do roteiro se encontra na juventude descolada, cuja aparência intelectual busca encobrir a vacuidade do discurso. Em outras palavras, uma esquerda de lacração, repleta de frases de efeito sobre o apoio às minorias, porém sem convicção nem aplicabilidade prática às teorias. “Isso é conservador?”, perguntam ambos, em diversos momentos, preocupados com a possibilidade de estarem adotando atitudes comuns ao campo oposto. Trata-se de uma ideologia de fachada, esvaziada de sentido, e apropriada à era das redes sociais e da militância de sofá. O autor evita ridicularizar o casal, porém sublinha a inconsistência de seu pensamento, assim como o aspecto inútil das conversas pseudofilosóficas.

Segundo, a narrativa se desenvolve de acordo com um ritmo e estrutura raros, onde uma cena não necessariamente serve de causa ou consequência à cena seguinte. Isso significa que os pequenos conflitos se sucedem de maneira relativamente autônoma, próxima de uma comédia de esquetes – seria possível remontar as interações em ordens distintas, preservando a coerência do percurso. Para além de simples saltos temporais, a associação livre permite que os blocos se articulem sem real determinação de tempo: jamais sabemos a duração deste passeio, seu objetivo, ou o período exato em que ocorre. O tipo de humor se alterna bruscamente entre a escatologia (Alex retira sujeira do nariz e come), o humor físico e histérico (a dona do carro arranhado na garagem), de desconforto (a presença da garota Eva dentro do carro) e situacional (os gemidos do sexo no carro à distância). Diversos produtores experientes tentariam direcionar o texto para um tipo único de comicidade, porém o longa-metragem austríaco faz da desconexão entre suas partes uma fonte inesperada de humor. O espectador é convidado a rir pela dificuldade em antecipar ou acompanhar os fatos – ou seja, rimos porque o discurso provoca estranhamento, ao invés de imersão.

Em paralelo, o roteiro busca metáforas para relacionar a irracionalidade dos bichos ao lado grotesco dos seres humanos: à medida que Alex e Martha se eximem de culpa por terem atropelado um cachorro, a montagem insere cenas de insetos se arrastando pelo solo, rastejando em plantas. Adiante, duas línguas humanas se beijam em câmera lenta, em plano tão próximo que o ato remete ao movimento das lesmas. O caráter viscoso, os fluidos e secreções colocam em pé de igualdade os seres humanos e os animais irracionais, ambos agindo segundo princípios de sobrevivência e autopreservação. Por trás da escapada sem rumo do casal, nota-se um aspecto sombrio mantido em segundo plano, pelo menos até o desfecho. Esta escolha serve a  equilibrar o tom: a cada atitude engraçada dos viajantes, descobrimos a presença de um homem armado e escondido, mirando os protagonistas. Quem estaria seguindo os dois? Com qual objetivo? O recurso do possível atirador se transforma em chacota, pois incapaz de imprimir tensão – é fácil se esquecer dele durante parte considerável do percurso. Entretanto, ele acena à possibilidade de uma conclusão desfavorável aos protagonistas.

O jogo descompromissado de fragmentação narrativa beira a aleatoriedade: alguns recursos são empregados a esmo porque o autor estima que possui o direito e a liberdade de seguir por qualquer caminho desejado, sem dar justificativas ao espectador. É possível que Marschall se divirta mais do que o público com a narrativa autoindulgente. A inserção da garota hippie, que entra na trama e desaparece dela com a mesma rapidez; a imagem de uma garçonete apática e as sequências no quarto de hotel criam a percepção de um mundo sem sentido, onde todos são igualmente imprevisíveis. Ao contrário de inúmeros feel good movies e road movies onde os protagonistas esquisitos habitam um universo banal, neste caso o comportamento cartunesco atinge a integralidade dos personagens. Criaturas Ordinárias investe no realismo fantástico, com acenos discretos à fisicalidade do cinema de Jacques Tati, e à artificialidade coreografada do trio de clowns Fiona Gordon, Dominique Abel e Bruno Romy. O decalque em relação ao real serve como objetivo em si, retoricamente: a obra se valoriza por fugir às normas esperadas, tornando secundário aquilo que teria a propor no lugar das convenções. O cineasta demonstra maior prazer em destruir as bases do que em construir algo sobre os escombros.

Ressalvas à parte, o projeto ganha força na reta final, quando se revela corajoso o bastante para propor um desfecho violento e possivelmente impopular. Neste momento, a leveza do conjunto se reveste de uma aparência sombria, na fronteira do suspense. A trilha sonora ironicamente carinhosa traz uma canção com a seguinte letra: “Na minha cabeça, você já era”. Se havia esperança de encontrar uma recompensa emocional ao término, ela desaparece com a conclusão brutal. Entre todas as estranhezas da produção austríaca, a principal delas reside na escolha deliberada de virar as costas ao espectador. Comédias populares costumam se esforçar até demais para oferecerem aquilo que imaginam provocar o riso e a sensação de contentamento. Marschall nada em caminho oposto, apresentando uma história que se desenvolve apesar dos espectadores. Nunca compreendemos a fundo as motivações dos protagonistas, os motivos para ignorarem o crime cometido, a origem da crise entre eles. Acompanhamos um processo em andamento, na condição de voyeurs, ou espiões – a história jamais foi feita para nós. Talvez este elemento justifique a impressão de frieza, reforçada pelas atitudes blasés de Martha e Alex. Recebemos as peças de um quebra-cabeças desmontado, exigindo certo esforço nosso para ordená-las. Resta saber quantos espectadores aceitarão entrar na brincadeira.

Filme visto online no 12º Cinefantasy, em setembro de 2021.

Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *