Crítica

A intenção de Coração e Alma, escancarada na sua segunda metade, é fazer uma espécie de propaganda da doação de órgãos, intenção mais que nobre, diga-se. Para tanto, começa mostrando a poesia intrínseca à juventude, com o garoto Simon (Gabin Verdet) deixando para trás a namorada, provavelmente após uma noite de amor, passeando pelas ruas em sua bicicleta até que, na companhia de amigos, pega umas ondas. O surfe, aliás, é o momento específico no qual se estabelece a beleza que logo dá lugar ao sofrimento. A cineasta Katell Quillévéré faz questão de penetrar nas torrentes, acompanhando os esportistas o mais de perto possível. São bonitas essas imagens do mar revolto, um gigante a ser domado. Logo depois, porém, o acidente que sobrevém à expressiva fusão ótica do mar com a estrada instaura a tragédia. O que temos a partir daí são instantes dolorosos ao lado dos pais de Simon, Vincent (Kool Shen) e Marianne (Emmanuelle Seigner), que precisam decidir se consentem a doação.

O dilaceramento materno e paterno é o que dá substância à primeira parte de Coração e Alma. Há, porém, a exploração de pequenas narrativas concernentes aos profissionais do hospital, como os anseios românticos da enfermeira Jeanne (Monia Chokri) ou a fascinação de Thomas (Tahar Rahim) por pintassilgos, que dizem mais respeito à intenção deflagrada assim que entra em cena o drama de Claire (Anne Dorval), cujo coração adoentado precisa de substituição. Aos poucos se percebe mais claramente a montagem de uma estrutura dramática que dá conta de, esquematicamente, “humanizar” os agentes ligados à doação de órgãos, mostrando desde a idoneidade do processo à realização das cirurgias, tanto de remoção quanto de transplante. De qualquer maneira, mesmo exposto esse caráter de propaganda boa, afinal a causa é urgente e merece difusão, há habilidade para evitar um percurso enfadonho ou essencialmente técnico, que abafe as complexidades ou as relegue ao segundo plano.

Para tornar ainda mais multifacetado esse registro dos meandros da doação, quando a personagem principal passa a ser Anne, somos confrontados por sua resistência, pois ela discute se gostaria de viver com o “coração de um morto”. Tal potencialidade, entretanto, é completamente esquecida, o que configura um ponto bastante falho da narrativa, a julgar pela importância a ela conferida inicialmente. Outra inconsistência tange às particularidades da fila dos transplantes. Numa cena, a médica diz à paciente ser bom resolver de uma vez, candidatar-se ou não, pois a espera pode ser grande. Logo depois, sem muita explicação, Anne é contemplada com o primeiro coração disponível. Para um filme guiado por procedimentos, empenhado em apresentar o devido funcionamento de uma cadeia, essa pode ser considerada uma inconsistência significativa. Como argamassa dos segmentos, Katell Quillévéré aposta num flashback que mostra Simon conquistando a amada, atendendo aos ímpetos do desejo.

As pessoas envolvidas nessa verdadeira corrente que recicla a fatalidade, transformando-a em esperança, têm boa espessura dramática, não sendo meros fantoches de uma tese ou algo que a valha. Embora o verdadeiro protagonista de Coração e Alma seja a própria doação de órgãos, esmiuçada pelo olhar sensível da realizadora, somos convidados a partilhar a dor da família que perde o filho, bem como a comemorar a possibilidade de uma mãe escapar com vida. Há questões aparentemente banais, como o envolvimento de Anne com uma pianista ou o vislumbre do deslocamento de um médico ouvindo música, mas que são enxertos importantes para a narrativa não ficar demasiadamente dependente da adesão do expectador à tecnicidade do sistema que permite a alguém com morte cerebral propiciar sobrevida a outrem. A literalidade, como a das cirurgias, enfraquece o lirismo visto no começo, diminui as instâncias em que o mecanismo dá lugar à simbologia, bem mais impactantes e comoventes.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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