Crítica


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Sinopse

Em Confia: Sonho de Cria, Nando é um batalhador entregador de aplicativo que sonha um dia se tornar músico. Ele acaba se envolvendo com Jaque, uma golpista, numa aventura que ele pensa ser a grande oportunidade de alcançar seu tão sonhado objetivo: o estrelato. Comédia.

Crítica

Nas últimas décadas, as linguagens televisiva e cinematográfica têm sem aproximado cada vez mais. E isso se explica de várias maneiras:0 da mudança do formato das televisões – que com telas mais largas simulam a razão de aspecto do cinema e deixam no passado o “quadrado” – à tecnologia digital que torna bastante semelhantes as câmeras com as quais se faz cinema e TV. Desse modo, falar de linguagens cinematográfica e televisiva como se elas fossem habitantes de mundos diferentes faz menos sentido agora do que há 20 anos. No entanto, existem diferenças entre uma coisa e outra, menos pela textura da imagem e mais por uma certa aproximação dos personagens e das situações. Confia: Sonho de Cria é um típico filme feito para a TV (ou streaming), sobretudo pelo modo como fragmenta excessivamente a trama e vai transformando os coadjuvantes em adereços do protagonista. Caso fosse uma série ou mesmo uma novela, essa história de um menino humilde que sonha em ser famoso poderia explorar melhor os seus núcleos, do herdeiro com pose de coach falido às demais figuras que orbitam em torno do sonho quase impossível de atingir o estrelado. Mas, como estamos diante de um filme com pouco menos de 90 minutos, as subtramas são gradativamente descartadas em prol do conto de fadas se tornando realidade com a ajuda de muitos episódios providenciais que pedem a vista grossa.

Confia: Sonho de Cria tem como personagem principal Nando (MC Cabelinho), entregador de uma lanchonete tradicional do bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. Diferentemente de muitos jovens de origem semelhante que sonharam em ascender socialmente por meio do futebol, ele está esperando a primeira oportunidade para sobressair em função do seu talento musical. Distraído, mas com um coração maior do que a responsabilidade, ele tem ao redor no seu trabalho a avó Mirtes (Rejane Faria) e uma turma de amigos que não deixam a peteca cair. Seu caminho é atravessado por Jaque (Malia), trambiqueira que se disfarça de nova funcionária da lanchonete com potencial para mudar tudo drasticamente. O roteiro assinado por Pedro Alvarenga, Fabrício Santiago e Renata Sofia começa a solicitar a nossa “benevolência” ao mostrar Jaque se integrando de maneira quase mágica numa equipe que nunca a viu na vida. Tudo bem que a ideia é elaborar a personagem como dona da capacidade de fazer coisas praticamente impossíveis por meio da malandragem, mas para isso não basta dizer que ela tem essa habilidade de enganar, pois precisamos ver esse talento fora do comum de Jaque para ludibriar os outros. Há certa inocência no modo como essa entrada num novo mundo é construída, simplesmente com Jaque soltando meia dúzia de lorotas e sendo perfeitamente “comprada” pelos demais ali.

Jaque é uma personagem interessante que pede passagem à medida que se torna importante para aquela pequena comunidade. Maltratada pela vida desde pequena, ela cresceu dando golpes na praça e agora decide utilizar suas habilidades no ramo da engambelação para criar uma “mentira do bem”. Por meio da estratégia baseada no aproveitamento da falsidade alheia, ela começa a espalhar o boato de que um grande artista brasileiro está prestes a voltar para fazer um show em sua terra natal – esse cara é Nando, mas com um banho de loja e uma pitada de mistério para fazê-lo parecer outra pessoa. A partir disso, Confia: Sonho de Cria poderia embasar de maneira menos superficial essa crítica ao mundo das aparências repleto de pessoas facilmente enganáveis, pois estão mais preocupadas em parecer do que efetivamente de ser alguma coisa. Infelizmente não é isso o que acontece. A observação disso até está escondida no filme, mas soterrada por uma série de facilidades narrativas e conveniências muito mal encaixadas. Em tempos de internet, nos quais basta uma rápida pesquisa para saber tudo a respeito de alguém, somente com muito boa vontade e condescendência é possível acreditar que um artista internacional possa ser falsificado em tão pouco tempo da forma como acontece no filme. É preciso fazer vista grossa e ouvido de mercador para acreditar nesse conto de fadas.

O diretor Fábio Rodrigo precisa desenvolver duas coisas principais em paralelo: 1) o romance entre Nando e Jaque – que pode trazer a fama a ele e a redenção a ela; 2) essa lorota “do bem” que deve fazer os marginalizados tomarem um atalho rumo a uma mudança radical de vida. MC Cabelinho e Malia dão conta do recado no primeiro quesito, construindo um vínculo crescente de maneira crível e sensível. Nando é conquistado pela capacidade que Jaque tem de negociar com as realidades das quais ambos foram excluídos. Aliás, isso é algo que poderia ter sido muito mais enfatizado pelo filme, afinal de contas o que falta a ele sobra a ela e vice-versa. Jaque se apaixona pela autenticidade que ela foi obrigada a negar desde cedo a fim de sobreviver. Já a mentira sobre o suposto MC famoso é um dos grandes problemas de Confia: Sonho de Cria. Não são engenhosas e nem sequer simbólicas as situações criadas para tornar isso possível. Há tantas coisas que poderiam ser exploradas a partir de uma enganação desse tamanho, mas o roteiro não está preocupado em escavar para tirar das profundezas dos personagens e dos assuntos algo mais rico do que a consolidação de um conto de fadas que pede repetidamente a suspensão da descrença sem nos dar recompensas em troca. No fim das contas, parece que estamos diante da primeira temporada de uma série de TV condensada em menos de 90 minutos, a julgar pela simplificação de tudo e pelo enfraquecimento de coadjuvantes e subtramas até eles “sumirem”.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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