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Sinopse

Um retrato aprofundado dos profissionais de saúde que trabalham na região indígena Yanomami. São enfermeiros e técnicos em saúde que dedicam suas vidas a tratar os habitantes dos pequenos abrigos isolados nos confins da floresta, onde esses profissionais formaram seus polos de atuação.

Crítica

Diferentemente do homem branco contemporâneo, sempre com câmeras nas mãos, registrando até o menor passo do dia a dia – traço ampliado pela visibilidade das redes sociais – os índios yanomami são avessos à captura de suas imagens. Então, o diretor Otavio Cury, primeiro, utiliza os agentes de saúde lotados nas reservas para fazer um retrato desses povos que sofrem para conservar traços de sua cultura milenar. A questão ética, portanto, não está ainda posta em Como Fotografei os Yanomami, o que se dá mais adiante. Sobressalente nesse início são as interações entre enfermeiros e nativos, com administração de vacinas, prescrição de medicamentos para horas certas, num itinerário um tanto indeterminado que ocasionalmente oferece sinais de seu norte. O espirro da agente em meio aos yanomami em tratamento é retórico, trazendo consigo a carga histórica de contaminações, de várias naturezas. Embora seja valorizado o esforço humanitário, fica claro que, sem o branco, o índio nem precisaria daquilo.

Os poros de Como Fotografei os Yanomami, pelos quais o filme se oxigena, são exatamente os momentos excepcionais em que o realizador se coloca de maneira mais evidente. Após uma série de testemunhos aparentemente sem objetivo definido, é a vez de entrevistas com os enfermeiros e demais profissionais de saúde que trabalham diretamente com os yanomami. A visão que os homens e as mulheres têm dos costumes indígenas, de uma realidade com a qual convivem há anos, continua estereotipada, repleta de preconceitos, numa perspectiva centrada na suposta superioridade do homem branco. Alguns chegam a chamar os índios de primitivos, outros se perdem nas próprias palavras ao tentar traduzir a naturalidade dos locais quanto ao sexo. Otávio é particularmente bem-sucedido nesses instantes de retenção das falas contraditórias de quem oferece ajuda aos povos locais. Elas deflagram um sem número de concepções equivocadas, de observações verticalizadas que estabelecem hierarquias tortas.

Como Fotografei os Yanomami chega ao paradoxo ético quando se debruça sobre a aversão indígena a fotografias e câmeras de cinema. Ainda que demonstre respeito ao estudar minuciosamente, a partir do relato alheio, os motivos que fazem os nativos rechaçarem a manutenção de suas imagens à posteridade, Otávio, ao invés de respeitar esse limite, o ultrapassa, filmando os yanomami sempre que possível. Pode-se entender o procedimento como uma noção de pertencimento ao povo branco transgressor da cultura alheia, mas há poucos indícios de autocrítica na forma como são entremeados os relatos da tradição e os corpos yanomami retidos em suporte digital. Mesmo dando margem ao questionamento, o documentário oferece instantes simbólicos, com destaque ao plano no qual a câmera que perscruta a intimidade alheia, de certa forma a vilipendiando, é encarada pelo celular em riste, que funciona como um espelho de contra-ataque. Nesse instante, sim, há uma espécie de mea culpa.

Portanto, Como Fotografei os Yanomami é menos sobre a atuação direta dos agentes de saúde no seio dos yanomami, mais acerca da intrusão do olhar branco numa realidade já totalmente modificada. A própria aquiescência (parcial) indígena com relação ao registro fotográfico, vista amplamente na cerimônia de inauguração da unidade básica de saúde da aldeia, é um sintoma forte do etnocídio que remonta a séculos de ocupação e exploração. Objeções feitas à reprodução do olhar que violenta a intimidade e os costumes yanomami, o longa-metragem consegue mostrar sucintamente os símbolos de uma destruição cultural, dando relevo aos detalhes, como a assimilação do código de vestimentas e o movimento de tornar exótico, carnavalesco, alguns elementos yanomami. O retrato é melancólico, especialmente por deixar exposta uma dinâmica irreversível. Os costumes e os corpos yanomami nunca mais serão iguais após o contato com o homem branco, pois condicionados a seu estilo de vida (e morte).

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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CríticoNota
Marcelo Müller
6
Francisco Carbone
3
MÉDIA
4.5

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