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Crítica
Clementina, documentário dirigido por Ana Rieper, tem o mérito de abordar a trajetória da grande Clementina de Jesus menos pelos fatos, privilegiando a importância de seu trabalho, inclusive, à preservação dos bens imateriais que dizem respeito à africanidade do povo brasileiro. Ao invés de investir num percurso batido, ou de percorrer banalmente uma linha de tempo, a realizadora entremeia valiosas imagens de arquivo, depoimentos de pessoas que conheceram e/ou colaboraram com a artista, ainda deixando espaço para a criação de uma observação que transcende os espaços físicos. A voz inconfundível da cantora ressoa constantemente, evocando a ancestralidade mencionada adiante por um especialista, então demonstrada musicalmente. Recorrendo ao uso de dispositivos de suportes variados, o longa-metragem passa longe de esgotar o assunto, a personagem, mas desvela sua essência e representatividade, não apenas no seio da música, mas também como figura cultural do Brasil.
Nesse roteiro engenhoso, cujos pontos de interseção são, justamente, os rastros permanentes das contribuições inestimáveis de Clementina, a cineasta evita deter-se demasiadamente sobre episódios e/ou temas específicos. Portanto, componentes imprescindíveis, tal o amor pelo ex-estivador celebrado como o maior parceiro da vida íntima da protagonista, ganham destaque, mas não sufocam a narrativa com eventuais excessos. Há uma demonstração suficientemente forte para substanciar a mirada, mas em consonância com os demais elementos dispostos. Os testemunhos de personalidades como Nelson Sargento e Alcione possuem peso semelhante aos dos anônimos netos que rememoram ao redor das panelas fumegantes. Isso se dá por conta da sensibilidade ao encarar a complexidade da mulher em questão por vários prismas, não almejando uma hagiografia ordinária, mas uma bonita homenagem. Tem-se, na duração relativamente curta, um panorama conciso e terno dessa preciosidade.
Clementina demonstra uma vontade de situar Clementina de Jesus como herdeira e propagadora de várias heranças culturais de valor incalculável. Essa transmissão de conhecimento, dado intermitente na tessitura do filme, aparece na constatação de que as músicas entoadas ecoam demandas e gritos antepassados. De forma semelhante, a comida é um traço hereditário e, portanto, potencialmente carregado de tradição. A referência da sambista à sua famosa receita de feijoada, com o relato amoroso da disposição de ingredientes e do preparo da refeição, é um sintoma claro dessa função imputada ao alimento. Isso, ainda mais se levado em consideração o fato de que tal iguaria possui fortes raízes africanas, assim como o carnaval, as rodas de capoeira, os terreiros de umbanda e candomblé, manifestações devidamente mencionadas no decurso. Esse fundo confere amplitude ao retrato e faz da filha ilustre de Valença, no Rio de Janeiro, um símbolo de força.
Estritamente do ponto de vista musical, Clementina sai-se relativamente bem ao apresentar um repertório arregimentado desde a meninice. São partidos altos, jongos, sambas canções e sambas de raiz na telona, a fim de oferecer ideia da envergadura dessa mulher que se manteve simples, essencial. Clementina de Jesus é perscrutada com reverência, num engendramento criativo de elementos, instado a não se restringir ao superficial e a contextualizar a protagonista em círculos sintomáticos e ocasiões múltiplas. É um documentário que vai além da eficiência, ocasionalmente se repetindo, mas, de qualquer maneira, obtendo sucesso ao condensar em pouco mais de 70 minutos um pouco da trajetória artística e pessoal daquela que entrou para os anais da música brasileira como uma de suas maiúsculas intérpretes. A cineasta Ana Rieper logra êxito ao capturar esse manancial de informações, resumindo-o ao fundamental, mas não se contentando com o básico.
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