Crítica

Os avanços tecnológicos recentes abriram diversas possibilidades para os novos aspirantes a cineastas. Se em outros tempos os equipamentos de filmagem muitas vezes representavam um grande obstáculo para a realização de um filme devido ao seu alto custo, hoje qualquer pessoa pode registrar com qualidade as imagens que desejar simplesmente utilizando o celular que carrega no bolso. O excelente trabalho do diretor norte-americano Sean Baker no multipremiado Tangerine (2015) é provavelmente o melhor exemplo de como as facilidades proporcionadas por esta tecnologia podem ser aplicadas em favor do cinema, algo que o brasileiro Frank Mora busca reproduzir, sem o mesmo sucesso, em Charlote SP, o primeiro longa-metragem nacional totalmente filmado com câmeras de smartphones.

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A trama acompanha Charlote (Fernanda Coutinho), uma modelo internacional, filha do milionário empresário Rui (Fernão Lacerda), que retorna a São Paulo após um longo período em Londres. Decidida a se estabelecer permanentemente na cidade natal que pouco conhece, a garota entra em contato com um antigo amigo, o cineasta Marcelo Scorsésar (Guilherme Leal). Deste reencontro surge a ideia de realizarem um filme, o que para Charlote representa a chance de finalmente encontrar um propósito para sua existência. A história, que guarda paralelos com a vida da protagonista Fernanda Coutinho – que já foi modelo na Europa e, além de atuar, também produz o longa – pretende se apresentar como uma jornada de autodescoberta e reflexão. Esta pretensão, porém, esbarra numa execução que falha em praticamente todos os aspectos.

Ainda que o baixíssimo orçamento possa justificar certas limitações técnicas, como a inconstância na captação de som, Charlote SP apresenta defeitos de realização primários, como os inúmeros erros de continuidade – na longa sequência de Scorsésar e Charlote durante um almoço, por exemplo, os erros são gritantes, fazendo até com que se questione se são intencionais. A direção de Mora – diretor do documentário Ponto de Virada: O Dia Que Mudou Sua Vida (2009) – é extremamente convencional e sem inspiração, não sendo capaz de explorar as possibilidades estéticas do registro com os celulares. Nos raros momentos em que algum elemento diferente é inserido – Charlote colorida em meio a uma multidão em preto e branco ou os efeitos animados quando Scorsésar divaga sobre uma premissa para seu filme – a tentativa soa gratuita e fora de contexto.

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Os problemas se estendem também ao campo das atuações, pois a falta de naturalidade da dupla central se opõe diretamente à aparência realista das imagens captadas. Tanto Coutinho quanto Leal não conseguem extrair emoções verdadeiras dos conflitos expostos, que são desenvolvidos por Mora de modo superficial e sem qualquer carga dramática. Narrativamente, o longa parece tão desnorteado quanto sua protagonista. Os desinteressantes diálogos vêm carregados de questionamentos existenciais calcados em clichês repetitivos – a garota que não cria raízes e vive em aeroportos. E o que deveria ser o alicerce da história, a jornada da Charlote por São Paulo e o modo como ela se relaciona com a cidade, se transforma em um mero passeio turístico cult.

A modelo visita o Centro Cultural São Paulo, a Galeria do Rock, o Teatro Municipal, mas estes locais ficam restritos ao papel de cartões postais, já que a imersão da personagem no ambiente nunca é sentida. Não há uma conexão perceptível com o meio ou os seres que ali estão, pois quase todas as pessoas com as quais Charlote mantém contato já lhe são familiares (as amigas, o poeta que conhecia sua mãe) e estas figuras nada acrescentam. Desta forma, a função do ambiente como um agente transformador na vida da protagonista se perde por completo. Tudo no filme soa ingênuo – a começar pelo nome de Scorsésar que, obviamente, possui uma cena na qual veste uma camiseta fazendo referência à obra de Martin Scorsese – ou batido, vide a sequência na qual a dupla principal imagina histórias repletas de estereótipos banais para as pessoas desconhecidas ao seu redor.

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O mesmo vale para as narrações em off pseudopoéticas feitas pelo pai de Charlote, no início citando canções que falam de São Paulo e ao final utilizando o lema da cidade. Mas a coisa fica ainda mais problemática no terceiro ato, que muda a ambientação para uma casa de campo. Lá tenta-se estabelecer um confronto entre Scorsésar e Rui, bem como uma tensão sexual envolvendo as garotas de programa que acompanham o empresário, porém tudo é construído sem a menor habilidade, com uma trilha sonora inadequada e atuações caricatas, resultando num impacto nulo. Assim, resta ao longa apenas o fator do ineditismo da utilização dos smartphones dentro do cenário cinematográfico brasileiro. E neste quesito é inevitável a comparação com o citado trabalho de Sean Baker em Tangerine, demonstrando pleno domínio narrativo, conseguindo imprimir uma identidade visual marcante e transformando uma cidade – no caso Los Angeles – em um personagem próprio e fundamental para uma história envolvente. Ao longo de Charlote SP repete-se que “Charlote andando de metrô já daria um filme”. Acontece que a distância entre um filme qualquer e um bom filme está além do alcance da malha metroviária paulistana.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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