Crítica

Carga Sellada fez quórum ao tumultuado ambiente político deste Festival de Cinema de Gramado. A coprodução entre Bolívia, México, Venezuela e França aborda a questão das estruturas de poder, tema especialmente delicado para as democracias emergentes dos países latino-americanos.

A "carga lacrada", a qual o título faz referência, surge logo na cena inicial, quando dois homens vestidos com roupas de proteção química despacham uma caixa com destino à América do Sul. Em seguida, na Bolívia, o Major Mariscal (Gustavo Parra) recebe a missão de levar a encomenda a seu destino, recebendo em troca a promoção para um cargo nos Estados Unidos. Deslumbrado, o personagem conta à mulher os planos do futuro, recebe um livro para aprender inglês e monta a equipe que embarcará com ele nessa viagem.

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Construído como aventura aos moldes dos épicos de David Lean, gênero de sucesso outrora e hoje em decadência, Carga Sellada delata a injustiça por trás das relações de poder, em especial a depreciação dos povos indígenas, como no flashback em que a mãe aconselha Mariscal a falar que ela é sua empregada para os colegas do educandário na capital. O mesmo Mariscal, contudo, deverá assumir a função de protagonista-vilão a passar pela provação de consciência proposta pela peça dirigida por Vargas. Com ares televisivos, o filme conta com movimentos de câmera limitados, personagens planos, estereotipados e cenas compostas de maneira frágil, lembrando os telefilmes dos anos 90.

Preocupado unicamente com o próprio interesse e amparado pelo poder que ocupa, o major ostentará o posto junto aos moradores dos vilarejos, que, alardeados pelas notícias de que a terra contaminada prejudicaria a vida na região, impedem o prosseguimento do trem por meio de barricadas ou mesmo do roubo dos trilhos. O roteiro entrega - mas podemos pensar em restitui - ao povo um poder que historicamente lhe é usurpado em sociedades desiguais, nas quais a igualdade acaba preterida diante dos interesses pessoais, da vontade de poder e do gosto pelas hierarquias. O movimento de idealização da narrativa, somado à repercussão da imprensa, desperta dúvidas que desestruturam a tripulação do trem e enfraquecem a convicção da máxima arcaica - mas muito difundida e eficiente em determinados contextos culturais - de que a verdade emana dos superiores.

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Premiado pelo júri do Festival Internacional de Cinema da Índia, Carga Sellada se configura como uma declaração de insubordinação e inquietude diante de realidades sociais discriminatórias. Prejudicado por um enredo sem desenvoltura e de dimensões estreitas, construído de maneira irregular, ainda assim o longa permite uma crítica lúcida acerca o papel da população na soberania dos países em desenvolvimento.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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