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Sinopse

Ano de 1972. Uma Kombi viaja de Amsterdã, Países Baixos, a Goa, na Índia. Essa viagem é a matéria-prima de Boom Shankar, único filme dirigido por Guará Rodrigues, personagem do cinema brasileiro, tanto como ator, quanto por trás das câmeras, como assistente de alguns dos maiores diretores do período.

Crítica

Um dos grandes personagens do cinema brasileiro dos anos 1960/70, especialmente da vertente denominada “marginal”, o mineiro Guaracy Rodrigues, conhecido no meio como Guará, foi uma figurinha carimbada em diversos filmes que marcaram essa época na qual a contracultura se contrapunha ao regime ditatorial que então desgovernava o Brasil. Mais comumente associado à atuação, à assistência e à direção de arte, ele tinha um projeto para debutar como diretor de longas-metragens chamado Boom Shankar, que consistia, basicamente, nos registros sem roteiros de uma viagem hippie saindo de Amsterdã, nos Países Baixos, com destino em Goa, na Índia. O filme foi rodado, mas diversos contratempos o impediram de ser finalizado e cumprir a sua missão, ou seja, de chegar às telonas para ser contemplado pelos espectadores. Décadas depois, quando o projeto se tornou apenas lembrança dos participantes da epopeia lisérgica, o diretor Sergio Gag teve acesso ao material sobrevivente (cerca de metade de uma primeira montagem) e decidiu fazer Boom Shankar: O Filme Perdido do Guará, híbrido de documentário e resgate fílmico com efeitos cinebiográficos. Ele pegou imagens e sons, aproveitando marcas decorrentes da passagem do tempo, e construiu uma narrativa que homenageia o autor Guará.

Boom Shankar: O Filme Perdido do Guará também pode ser compreendido como uma incomum empreitada cinebiográfica, principalmente pelo modo como se refere à Guará sem recorrer ao excesso de informações que geralmente caracteriza esse filão. Ao se apropriar das imagens, dos sons e do olhar dessa figura transgressora, Sérgio está falando do personagem justamente a partir de seu prisma iconoclasta, da sua disposição por romper com os limites da narrativa clássica e libertar o cinema das amarras industriais. Vemos trechos do filme perdido em que os personagens se movimentam com absoluta liberdade diante do dispositivo, improvisando falas e cenas de acordo com as vivências e os lugares, não sendo condicionados por um roteiro prévio. Sérgio entremeia esses vislumbres com depoimentos em off de pessoas que participaram dessa empreitada transcontinental, falas estas que auxiliam bastante a compreensão dos problemas enfrentados pela trupe de hippies que peitava as regras (cinematográficas e sociais) como forma de expressão no mundo dividido entre o autoritarismo e o desejo de emancipação. Interessante que nesse processo de resgate Sergio não tenha se atido à restauração do material encontrado, fazendo questão de preservar marcas de mofo visíveis como indícios de sua arqueologia. Desse modo, em vários momentos as imagens são “contaminadas” por pontos verdes. E está tudo bem.

Não faria realmente sentido em Boom Shankar: O Filme Perdido do Guará tratar a imagem encontrada como algo a ser corrigido. Seria até contraditório falar de personagens e intenções contraculturais, portanto subversivas, operando a partir de um embelezamento dos negativos a fim de atingir efeitos estéticos padronizados. Por isso, é louvável que o longa-metragem preserve as ranhuras ocasionadas pelo tempo, algo que confere outra camada ao resgate cinematográfico com tons de saudade e reverência. Diretor de fotografia do filme sessentista, Toni Nogueira é creditado como roteirista e depoente, assim como a sua esposa Célia Nogueira, a protagonista da obra anterior, uma das testemunhas que ganha voz para ecoar o passado. Os dois contam histórias impagáveis sobre o ímpeto libertário de Guará, sua porralouquice se transformando em material de cinema, a coragem de lotar uma kombi de hippies e percorrer continentes em busca de um filme praticamente sem pré-programações. Aliás, é muito bonita e poética esta ideia de “ir ao encontro de um filme” durante a sua concepção, atitude condizente com o pensamento dos autores do chamado cinema marginal, exacerbação muitas vezes dionisíaca que visava romper com o bom-mocismo de um cinema acomodado e adestrado. Ainda que seja um tanto repetitivo, esse documentário-cinebiografia de resgate consolida diversas ideias em sua tessitura narrativa, assim se tornando uma ode que não reivindica essa natureza para si de modo egóico.

Sergio Gag atua como um artesão costurando imagens e sons do passado aos depoimentos do presente visando iluminar uma obra inacabada com viés contracultural e ainda celebrar o seu já falecido autor. E o faz por meio do elogio ao seu olhar transgressor. Algumas imagens do nunca concluído Boom Shankar dão a dimensão do que poderíamos esperar se ele existisse de fato como obra acabada, vide o momento em que o protagonista nu arrasta a carcaça de um cachorro em decomposição. Cenas como a do casal trocando carícias enquanto há uma negociação de tráfico de cocaína acontecendo dão bem a ideia de como uma geração citada se relacionava com a sexualidade e a ingestão de substâncias que buscavam ampliar as consciências. Sergio dá a importância devida a esses assuntos em Boom Shankar: O Filme Perdido do Guará, fazendo ao mesmo tempo um bonito trabalho de arqueologia e demonstrando a sua admiração por uma figura que integrou as fileiras do nosso cinema resistente aos arroubos tirânicos de uma parcela do mundo. Que lindo Guará e seus amigos exilados do Brasil ditatorial fazendo um filme ao percorrer continentes na kombi, sem roteiro ou condições “ideais” para isso. Não fosse por atitudes como a de Sergio, a de preservar registros e reelaborar uma narrativa a partir deles, os causos e os produtos dessa criatividade subversiva seriam fadados a morrer completamente com seus remanescentes. Assim, o cinema cumpre a função de eternizar aquilo que parecia perdido.

Filme visto durante o 19º CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, em junho de 2024

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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