Crítica


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Sinopse

Bimi tornou-se a primeira mulher indígena Huni Kuin a organizar sua própria aldeia, uma atividade até então exclusiva dos homens. Em sua trajetória de vida, por sua personalidade forte e determinada, enfrentou uma série de dificuldades. Sobretudo devido a questões hierárquicas e tradicionais do povo Huni Kuin, uma sociedade essencialmente patriarcal, resultando na saída de sua terra indígena de origem, culminando na organização de uma nova aldeia, na qual desenvolve vários papéis, dentre eles, pajé de cura, detentora de saberes ancestrais do povo Huni Kuin.

Crítica

Para os diretores indígenas responsáveis por Bimi Shu Ikaya, o cinema é um gesto essencial à preservação da tradição dos Huni Kuin, tribo do Acre. Numa realidade em que as culturas ancestrais e brancas se imiscuem ali, sendo mutuamente ressignificadas, eles percebem a necessidade de transformar o audiovisual numa ferramenta para dotar de perenidade os elementos passíveis de perda ao longo do tempo, inclusive por conta da possível falta de interesse das gerações vindouras. Os conhecimentos de tecelagem e, principalmente, os medicinais são fortemente defendidos pela matriarca do local, Bimi, avó de um dos realizadores, que, quebrando determinados postulados daquela coletividade bastante estratificada em função do gênero, toma para si esse papel essencial de chefe e guardiã de bens imateriais de valor incomensurável. Em vários instantes a câmera flagra essa mulher de fibra se esforçando para que as bases da sociedade local perdurem.

Isaka Huni Kuin, Zezinho Yube Huni Kuin e Siã Huni Kuin percorrem os espaços da aldeia em busca desses princípios, sublinhando as atividades coletivas em que Bimi se empenha para passar adiante informações e ciências. Ainda que o documentário não faça da protagonista sua única célula de interesse, ela é imprescindível, na condição de emblema dessa consciência de que algo efetivamente rico pode se perder definitivamente, inclusive em virtude dos cada vez mais prevalentes indícios da cultura branca nas aldeias. As vestimentas típicas, tecidas pelos locais, contrastam sugestivamente com camisetas de motivo pop ou futebolístico e outras peças de vestuário adotadas no decurso da influência do além-tribo. Algumas imagens são naturalmente irônicas e retóricas, como a índia ostentando no peito o símbolo do Superman, vislumbre encarregado de criar dupla camada que tange à assimilação de culturas alastradas com ímpeto dominante.

Ainda que o apontamento não seja feito frontalmente, fica o questionamento quanto ao peso que certos símbolos adquirem ao se desprenderem exatamente de suas matrizes. A linguagem, as atividades laborais, a forma como o algodão é colhido e trançado, os segredos da preparação de beberagens curativas, tudo isso suscita a urgência da perpetuação que a câmera almeja. Mesmo Bimi Shu Ikaya seja uma produção irregular, que não desdobre alguns apontamentos de extrema relevância, sobrevoando-os por primas bastante parecidos, exibe uma potência singular, especialmente por conta de uma estrutura narrativa que comporta a incorporação do próprio cinema ao seu tecido essencial, com discussões atreladas às particularidades daquela realização, mas outras concernentes à vontade de consolidar uma vertente indígena nas telonas.

A capacidade de registro e alcance audiovisual é entendida por Isaka Huni Kuin, Zezinho Yube Huni Kuin e Siã Huni Kuin como vitais – sobretudo diante de uma contemporaneidade que trabalha até o limite da saturação da feitura e do compartilhamento de imagens em movimento – para estabelecer uma ponte fértil entre passado e futuro. Bimi, a protagonista que demonstra tenacidade, é uma força a serviço da transmissão de conhecimentos basilares à sobrevida dos Huni Kuin. Ela se diz feliz por participar do “projeto” (forma como se refere ao filme co-dirigido por um de seus netos), reafirmando a pré-disposição ao vanguardismo, à adaptação a eras cujos ditames são completamente diferentes dos seus da meninice. Nessa equação, os cineastas destacam, ainda, a obrigatoriedade de fortalecer inicialmente a tradição, as instâncias que desejam eternizar.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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