Crítica

Duas garotas diante de uma policial sendo revistadas após serem acusadas de roubo. Assim que a luz do quarto ao lado – onde estão os adultos – se apaga, a menina agarra a amiga e foge pela noite adentro, em busca de diversão irresponsável. Moça e rapaz chegam juntos, esgueirando-se silenciosamente, adentro de um quarto de hotel barato, para uma transa rápida – a primeira dela, certamente uma entre tantas para ele. A mulher que entra em casa, no apartamento vazio, e ao olhar para a cozinha vê quem já não está mais ali e desaba num choro dolorido, sofrido, como se ele fosse capaz de levá-la novamente a um tempo onde não havia tristeza nem descaso. Todas essas sequências são protagonizadas pela mesma personagem no drama Belle Épine, um dos primeiros trabalhos de destaque da revelação francesa Léa Seydoux.

O título original – Belle Épine, adotado também no Brasil – faz mais sentido ao que o filme se propõe do que o batismo internacional, que optou pelo convencional Dear Prudence (nome da protagonista). Pois ao invés de termos uma “querida Prudence”, como alguém a quem nos dirigimos em uma carta, o que vemos em cena é um verdadeiro e “belo espinho”, daqueles que atraem num primeiro olhar, mas machuca os que muito se aproximam. E a tarefa de exercer com competência estes dois lados opostos de uma mesma pessoa, nitidamente em crise, compete à jovem Seydoux, que estrelou esse filme antes de trabalhar sob o comando de Woody Allen, Raoul Ruiz, Tom Cruise e no polêmico – e consagrador – Azul é a Cor Mais Quente (2013), vencedor da Palma de Ouro em Cannes. Mas também não era nenhuma novata, e experiências prévias junto a nomes como Quentin Tarantino, Ridley Scott e Christophe Honoré colaboraram decisivamente para esse resultado, preparando uma intérprete capaz de, literalmente, carregar um filme nas costas. Exatamente o que ela faz aqui.

Belle Épine, afinal, não é um filme ruim – apenas está longe de ser tão bom quanto gostaria de ser. Afinal, seu maior – e quase único – mérito é justamente sua protagonista, uma atriz misteriosa, dona de muitas camadas, profunda e intensa. Sua Prudence está atravessando um verdadeiro inferno, e somente nos instantes finais da nossa trajetória ao seu lado é que ela se permite oferecer um vislumbre do que a atormenta – apesar destes motivos estarem expostos desde o início da ação. Tamanha rebeldia e insolência, afinal, tem suas razões: a mãe morreu há menos de um mês, o pai viajou para um outro continente e a irmã mais velha se sente ‘deprimida’ demais para ficar ao seu lado na casa da família, refugiando-se no namorado e abandonando-a à própria sorte. Ou azar, para ser mais apropriado.

Prudence desafia as autoridades, se sente inexplicavelmente atraída pelo universo dos motociclistas, com seus perigos e contravenções, dá pouca atenção ao corpo, à fase que enfrenta ou aos amigos que agrega – e desperdiça. A prima até lhe pergunta: “você não sente nada? Como pode reagir assim?”, mas a apatia da personagem não encontra reflexo no desenvolvimento da trama, graças à melancolia da diretora e roteirista de primeira viagem Rebecca Zlotowski, que chega até a fazer uso de um desfecho moralista para apontar o rumo aparentemente sem volta a que a protagonista se dirigia. E com recursos narrativos esquemáticos e soluções pouco inspiradas, temos uma história que se salva basicamente pelo esforço de uma atriz em formação, num desempenho que já adiantava o seu melhor.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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