Crítica


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Sinopse

Sur é uma jovem indonésia que perde a bolsa de estudos depois da divulgação de suas fotos comprometedoras numa festa. Ainda atordoada pela dimensão dos acontecimentos, ela decide investigar o que aconteceu naquela noite.

Crítica

O recurso narrativo do whodunitwho [has] done it, ou seja, quem fez isso? – é muito utilizado especialmente em histórias de suspense. Se você é fã dos livros escritos por Agatha Christie ou mesmo dos protagonizados por Sherlock Holmes sabe bem do que isso se trata. Acontece uma coisa (geralmente um crime hediondo) e a história tende a não acabar sem que haja a descoberta do responsável. Pode ser mais de um e provavelmente das redondezas. Aliás, uma das estratégias desse tipo de abordagem é colocar a carapuça da suspeita em praticamente todos ao redor, até naqueles homens e mulheres que não parecem ter motivos/índoles para fazer algo ruim. É geralmente neste ponto que distinguimos os bons dos maus whodunit: pela maneira como os acusados são situados como potenciais culpados, mas também pelo modo como os conflitos revelam o entorno. Por exemplo, em Twin Peaks (1990-2017), o cineasta David Lynch transformou em norteadora a pergunta “Quem Matou Laura Palmer?”. Porém, o grande valor do programa era, a partir do jogo de gato e rato, mostrar que a cidadezinha norte-americana tinha suas podridões encobertas pela aparência de região sossegada. As Fotos Vazadas tenta algo parecido com o meio ambiente de Sur (Shenina Cinnamon), uma bolsista de computação cuja reputação é abalada após a divulgação sem consentimento de fotos comprometedoras. Mais do que entender os efeitos dessa tormenta, o filme explora a força do moralismo local.

Para uma plateia ocidental, pode parecer exagerado o fato de Sur perder a bolsa de estudos por ser exposta publicamente, bem como desproporcional o ato de ser expulsa pelo pai apenas por ter chegado embriagada em casa causando alvoroço na vizinhança. E talvez realmente falte ao filme uma pitada mais caprichada de contexto para que os espectadores estrangeiros compreendam essa quase criminalização do álcool no país do sudeste asiático por motivos morais e religiosos. Basta uma rápida pesquisa na internet somando os verbetes “Indonésia” e “Álcool” para termos notícias sobre as restrições dessa natureza e até a respeito de violências sofridas por consumidores de bebidas que não seguem o fundamentalismo religioso influente no país. Fato é que na trama a personagem principal entra em desgraça por conta dessa transgressão considerada grave. Responsável pelo website de um grupo teatral da faculdade, ela estava numa festa para ser indicada a outro trabalho (portanto, o motivo era "nobre") e acabou “apagando”. Mas, seria por conta de excessos ou em virtude de alguma intervenção externa? O interesse principal do filme se dá justamente nessa busca por peças de um quebra-cabeças que pode, além de reabilitar uma imagem pública, expor as verdades inconvenientes sobre alguém. Depois que o mundo desaba sobre seus ombros, a jovem se enche de brios e parte para a luta.

A grande qualidade de As Fotos Vazadas é justamente o retrato de uma sociedade que oferece poucos subsídios à potencial vítima de abuso (seja ele sexual ou relativo à devassidão da intimidade). Os membros da banca que avaliam a bolsa de Sur são todos homens que expressam seus moralismos de uma maneira naturalizada; o pai da menina não pensa duas vezes ao ter de escolher entre desabrigar a filha ou encarar a maledicência dos vizinhos fofoqueiros; pessoas que podem ter informações valiosas acabam se calando por conveniência, indiferença ou medo. Entretanto, nossa experiência prévia como espectadores de suspenses do tipo whodunit manda que não desconfiemos apenas dos personagens abertamente ruins, mas também dos bons e, principalmente, dos que demonstram virtudes demais. E enquanto a protagonista quebra diversas barreiras éticas para seguir investigando o que teria acontecido naquela noite fatídica, o cineasta Wregas Bhanuteja nos conduz por uma boa teia de possibilidades. Será que devemos mirar em quem hostiliza a menina ou ficar de olho exatamente nos que a acolhem no momento da desgraça? Os principais suspeitos são os membros do grupo teatral, o que coloca outra coisa em pauta: o quanto de verdade e de representação há na atitude de cada um? E essas perguntas instigam, o que é bom, pois manter a dúvida em constante movimento é fundamental no gênero.

Além da questão da hipocrisia de uma coletividade controlada por cabeças masculinas retrógradas, há o componente social As Fotos Vazadas. Sur é uma jovem humilde lutando contra as engrenagens de um habitat natural apenas aos colegas privilegiados financeiramente. E uma das fragilidades do filme está justamente na utilização simplista desse componente para compreendermos as raízes da situação. Wregas Bhanuteja investe na criação de um labirinto a ser percorrido pela heroína em busca de reparação, mas nesse meio tempo quase se esquece de alimentar as diferenças de classe que parecem essenciais para o quadro que ele poderia pintar com tintas ainda mais obscuras e carregadas. O enredo perde substância ao não enfatizar como poderia a ambiguidade do comportamento obcecado de Sur, assim como ao apostar num confronto superficial entre as atitudes impunes de uns e as vulnerabilidades dos outros. Como bem atesta a mensagem que antecede os créditos finais, o longa-metragem tem como principal objetivo lançar luz sobre a exposição online de intimidades, mas poderia ter gerado um retrato bem mais sombrio dos que se indignam publicamente, mas que na intimidade viralizam esses conteúdos. Na medida em que descobrir o responsável passa a ser a principal questão condutora, e menos a violenta descamação das aparências, tudo se resume a descartar uns e a confirmar os restantes como vilões. É um suspense competente, mas que poderia ir muito além como radiografia social.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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