Crítica

Jack Nicholson é a melhor razão para se assistir a As Confissões de Schmidt – ele realmente carrega o filme nas costas, aparecendo em mais de 95% das cenas. Com uma atuação surpreendente, em que abdica de muitos trejeitos e manias que o fizeram famoso ao longo de mais de quarenta anos de carreira, o astro mostra aqui porque foi considerado o maior ator de sua geração. Por outro lado, Kathy Bates é sempre uma surpresa. Num desempenho arrebatador, ela consegue, inacreditavelmente, eclipsar a presença iluminada de Nicholson a cada entrada de cena – mesmo aparecendo pouco mais de 15 minutos durante todo o filme! Mesmo assim, ela não precisa muito mais do que uma banheira quente para deixar gravada em nossas memórias o seu poder de fogo – e é exatamente sobre isso que você está pensando.

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A presença destes dois astros é o maior mérito de As Confissões de Schmidt. Por outro lado, é também seu pior defeito, já que as presenças de ambos são tão fortes, tão arrebatadoras que tudo o mais acaba ficando obscuro, deixando as intenções do (ótimo) roteiro num segundo plano. A impressão que se tem é que o próprio diretor Alexander Payne ficou absorto diante às atuações de ambos, esquecendo por instantes de suas intenções originais. Não chega a ser um pecado mortal, uma vez que Jack é daquele tipo de ator que domina o espaço a sua disposição como um maestro, e Bates ocupa cada deixa com uma demonstração ainda maior de suas capacidades. Tais encontros resultam invariavelmente em um presente para o público. Mas, no entanto, abrem também espaço para deixas talvez não desejáveis, possibilitando situações que seriam melhor exploradas de outra maneira.

Warren Schmidt (Nicholson) tem 66 anos e recém se aposentou. Sem maiores objetivos na vida, começa a se corresponder com o pequeno Ngudu, um órfão que vive na Tanzânia e que ele apadrinha através de um sistema de ajuda internacional. Por essas cartas temos acesso as suas idéias, sentimentos e tristezas. Terá tudo valido à pena?, é que pergunta a si próprio, sem encontrar uma resposta satisfatória. Após a morte da esposa (June Squibb), encontra no eminente casamento da filha (Hope Davis, de Capitão América: Guerra Civil, 2016) uma missão a ser cumprida: ele precisa impedir que ela se case com alguém “inferior”, abaixo do que merece, segundo sua visão.

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As Confissões de Schmidt é construído numa estrutura de três atos. Se primeiro temos esse quadro com as insatisfações de um homem já no crepúsculo de sua vida, quando seus sonhos já o abandonaram e tudo o que possui lhe parece pouco e sem sentido, na segunda parte o que vemos é um painel das peculiaridades que formam o cidadão médio norte-americano. Schmidt parte com seu motorhome rumo à filha, numa road trip ao acaso, atingindo um resultado muito parecido com o visto em Uma História Real (1999), de David Lynch. Estaria na simplicidade das pequenas cidades a verdadeira chave para a felicidade? Talvez sim, talvez não, afinal as respostas nunca são muito claras para Schmidt.

É com o terceiro segmento, entretanto, que as maiores surpresas serão reveladas. Quando Schmidt finalmente chega à casa dos futuros sogros de sua filha e Nicholson começa a interagir com os demais membros do elenco. É nesse ponto em que se desenvolve melhor a relação dele com a filha, com o genro (Dermot Mulroney, numa caracterização impressionante), e com a mãe desse (Kathy Bates, impagável). Chega a ser impressionante o que uma boa atriz é capaz de fazer, mesmo com tão pouco tempo em cena. Bates, como Roberta, simplesmente ilumina a cena em cada aparição, com uma naturalidade total em seus movimentos, justificando sua indicação ao Oscar.

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No final desta trajetória, As Confissões de Schmidt se confirma como um percurso dolorido e, ao mesmo tempo, necessário, amenizado pela ironia e bom humor dos condutores. As reflexões provocadas são pertinentes e estimulam o raciocínio, mesmo que muitas vezes acabem ficando à sombra da presença gigantesca de Nicholson, um ator acima de qualquer crítica – ao menos nesse trabalho, em que abdica do seu porte usual e assume uma personalidade frágil e decadente, realmente “vestindo” o personagem. É um aula de atuação e que vislumbra também uma lição de vida, ainda que essa seja colocada numa posição secundária pela forma como foi levada às telas.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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