Crítica


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Sinopse

Estudante universitária que mora numa comunidade à beira do rio, Martha cuida de uma associação de mulheres e é casada com Tiago, ex-pescador. O afeto entre eles, bem como a existência da vizinhança, será colocado à prova por conta da vontade da prefeitura de desalojar a todos.

Crítica

O plano-sequência do começo de Aponta pra Fé: ou Todas as Músicas da Minha Vida é uma demonstração de virtuosismo. A câmera passeia por recantos de Porto do Capim, comunidade ribeirinha tradicional de João Pessoa, como que tentando esquadrinhar os encantos de sua existência. Nem mesmo a alteração da luz por conta da movimentação das nuvens que encobrem o sol inibe a continuidade da pequena jornada que parece estabelecer o espaço geográfico como essencial ao filme. Partindo da ameaça real de transformação da localidade factual num recanto turístico, a cineasta Kalyne Almeida ensaia incursionar por um terreno muito frequente no cinema contemporâneo, aquele dedicado a entrelaçar micro e macro para denunciar a perversidade dos ímpetos desenvolvimentistas de um progresso alheio às heranças culturais e históricas. Todavia, não é o que acontece. Infelizmente, o filme vai apenas acumulando conflitos de ordem mais privada do que concernente ao público, somando ranhuras e negligenciando o que parecia ser seu grande motivador.

Apesar do mencionado princípio exuberante, Aponta pra Fé logo deixa bastante evidentes as suas fragilidades. O resultado decepcionante não é apenas fruto do enorme desvio do foco principal, tampouco do privilégio da mal resolvida contenda familiar que poderia ocorrer em qualquer lugar do mundo – o que arrefece a singularidade da geografia e dos costumes locais, que se pretendia valorizar. Há no âmbito formal um engessamento decorrente, quiçá, da inexperiência da cineasta, haja vista as marcações de cena evidentes e composições visuais não justificadas dramaticamente. Kalyne pontua a doença coronária da Vó (Vó Mera) como possível metáfora da morte anunciada da comunidade ameaçada pela sanha atualizadora do mercado imobiliário. Entretanto, passada a sinalização da óbvia ponte entre a enfermidade da idosa e a suposta obsolescência local, nada é feito para ela ser consolidada. A personagem octogenária entra e sai sem mais aquela, inclusive porque a realizadora não consegue conscientizar os laços que amarram as pessoas por ali.

Nesse processo de desperdiçar simbologias e afins, Aponta pra Fé vai deixando de lado a urgência abatida sobre os moradores ameaçados de despejo. O filme não utiliza o tempo como elemento de pressão. Ao invés disso, Kalyne prefere se debruçar sobre a crise matrimonial entre Martha (Rayssa Holanda) e Tiago (Bruno Goya), sem, ao menos, tornar relevante a diferença enorme de pensamento que os separa quanto à questão da desapropriação. Ele, trabalhador da construção civil, entende a mudança como benéfica, pois não consegue encontrar valor naquela área considerada por muitos como um bem imaterial da Paraíba. Ela, por sua vez, pretensamente é uma defensora da tradição. Mas, para além de meia dúzia de manifestações passageiras em meio a discussões domésticas, o único instante em que de fato assume uma posição de liderança em relação ao imbróglio é na apressada cena da reunião com outras pessoas dispostas a lutar para ali permanecer. O assunto motivador – o iminente apagamento histórico – não configura num eixo ao que acontece no longa-metragem.

Kalyne Almeida demonstra displicência em passagens essenciais. Diferentemente de quando vista no plano-sequência supracitado, a assimilação da mudança de iluminação por conta do deslocamento das nuvens durante uma conversa soa como expediente preguiçoso. Esse desajeito também é perceptível no tratamento dado ao tempo. Além de não lançar mão da urgência como engrenagem de tensão ainda maior sobre o lugar comprometido, a realizadora dispõe elipses – supressões de circunstâncias e/ou períodos inteiros em prol da cobertura maior – sem habilidade, causando solavancos improdutivos. Por exemplo, há separação pouco observada, seguida da reaproximação após um intervalo de dias (meses?) não mensurável pelo expectador. Ademais, é bastante questionável a justaposição das sequências que mostram um homem potencialmente agressivo, de faca em riste, suplicando para voltar ao lar, e a conversa pós-sexo num clima descontraído. Ruídos desses se acumulam ao ponto de esvaziar as poucas possibilidades de reflexão sobre amores e cidade.

Filme visto online, em dezembro de 2020, no 15º FestAruanda.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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