Crítica


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Sinopse

Há uma inversão de poder entre homem e animal. Caçado vira caçador e a hostilidade ganha uma nova intensidade.

Crítica

Animais Anônimos é baseado numa inversão. Geralmente, os animais são as caças e os humanos os caçadores. Mas, o longa-metragem francês escolhido para encerrar o 13º Cinefantasy traz uma realidade alternativa (será?) em que a troca desses papeis vira a razão de ser. O discurso do filme é sustentado por certas perguntas implícitas: e se as atrocidades do ser humano com os animais fossem a ele impostas? E se o jogo de dominação e selvageria virasse completamente? Como estamos diante de um filme de horror, vale também compreender a produção por meio de sua utilização dos elementos do gênero. Como não há uma trama propriamente dita, apenas a colagem de situações potencialmente angustiantes, o cineasta Baptiste Rouveure investe na criação de uma atmosfera aterrorizante. A câmera na mão empresta urgência com sua trepidação e intensidade quase documentais; o cenário envolto em neblina cria tons de irrealidade; e o silêncio dos personagens, sejam eles quais forem, gera uma angústia adicional. Homens e mulheres são perseguidos, trancafiados e acorrentados por bípedes com cabeças de cervos, cachorros, cavalos, bois e carneiros. Não há explicações sobre o contexto e essa falta de informação equivale metaforicamente ao nevoeiro obscurecendo as fronteiras ao redor.

Durante boa parte de Animais Anônimos, os vilões são registrados de relance, sem que o espectador tenha a oportunidade de enxergar, por exemplo, os seus rostos completamente. O cervo de espingarda em punho, mirando o horizonte como se fosse uma espécie de líder/guardião, forma uma imagem que reforça o clima assustador do longa-metragem. Baptiste Rouveure cria uma experiência em que a brutalidade é basicamente insinuada, em poucos momentos ganhando aspectos gráficos. Trocando em miúdos: somos levados a imaginar o que acontece com as pessoas aprisionadas, mas não testemunhamos as tais selvagerias, como alguma parte do corpo vandalizada ou alguém sendo desmembrado. Há um trabalho muito refinado de comunicação entre campo e extracampo, ou seja, entre o que aparece no quadro e aquilo construído por meio de sons facilmente identificáveis. Não há diálogos, mas isso não quer dizer que o desenho sonoro seja negligenciado e/ou minimizado. Muito pelo contrário. Os sons que “invadem” imagens aparentemente tranquilas as reordenam, como quando é possível ouvir o serrar de um osso enquanto observamos apenas a porta entreaberta que leva para fora. A estratégia é criar um panorama de violência mais sugestivo do que necessariamente explícito.

Dentro dessa perspectiva da inversão, a cena mais sintomática é a do matadouro. Infelizmente, são pertencentes ao cotidiano os registros de cabeças de gado saindo de veículos de transporte superlotados e transitando pelos caminhos dos abatedouros até se transformarem em carne para consumo humano. Portanto, testemunhar humanos nesse papel é claramente uma forma de voltar àquelas perguntas implícitas que balizam o filme: e se as atrocidades do ser humano com os animais fossem a ele impostas? E se o jogo de dominação e selvageria virasse completamente? Animais Anônimos busca oferecer uma experiência de sensibilização por meio da identificação, afinal de contas é mais fácil nos projetarmos em pessoas sofrendo determinadas violências. Porém, é uma pena que esse terror voltado à conscientização não ultrapasse determinadas barreiras do “bom gosto”, sendo a principal delas exatamente a observação direta das vias de fato. É compreensível que Baptiste Rouveure prefira deixar tudo muito velado, mantendo a brutalidade fora do quadro, uma vez que isso integra um conjunto narrativo bastante coeso. No entanto, às vezes há espaço para a sensação de que as coisas ganhariam em intensidade se ele quisesse transitar pelo gore ou se pretendesse “sujar as mãos’.

Animais Anônimos é um horror elegante, daqueles que se afastam voluntariamente das abordagens mais declaradas do gênero. Não vemos humanos estripados de cabeça para baixo no matadouro e tampouco instigados até a morte sanguinolenta numa rinha. Baptiste Rouveure apenas incita a imaginação alheia sobre essas possibilidades, mas não deixa a imagem materializar a inversão da violência que os humanos impõem aos animais na nossa realidade. O que prevalece positivamente é a criação da atmosfera no limiar entre a realidade e o pesadelo. Em nenhum momento sabemos se o longa-metragem se passa num mundo alternativo ou cronologicamente num futuro distópico. Não há subsídios para essa compreensão. A ignorância quanto a espaço, tempo e contexto permite que a ênfase recaia no aspecto físico da experiência. Ao prescindir de componentes que poderiam se distrativos do básico, o realizador abre um caminho para coisas fundamentais, tais como a agressividade e o instinto de sobrevivência. No entanto, Rouveure prefere frustrar as expectativas dentro desse terreno propício ao rudimentar, mantendo a mensagem ecológica martelando a cada sequência nas quais animais aterrorizam humanos. O bom é que a construção da agressividade extracampo se dá de maneira instigante.

Filme assistido durante o 13ª Cinefantasy, em junho de 2022.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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