Sinopse
Salomé retorna ao vilarejo de sua família nas montanhas a fim de passar as férias. Mas, as coisas mudam rapidamente de figura quando a sua avó morre repentinamente e os adultos se desesperam por causa do funeral.
Crítica
Ao falar de Volver (2006), o aclamado cineasta Pedro Almodóvar disse em diversas entrevistas que esse filme reproduz um sentimento presente na região de La Mancha, especificamente na vila onde ele nasceu: o de que a relação com os mortos é diferente nos povoados do interior, pois os desencarnados parecem seguir convivendo por lá. A julgar por Alma Viva, a motivação da cineasta portuguesa Cristèle Alves Meira se assemelha a do colega espanhol. Além do mais, ela enfatiza que a morte e o misticismo gerador de causos e crendices não podem ser desvinculados dos cotidianos da pequena comunidade portuguesa incrustrada nas montanhas. Sem as distrações provenientes das metrópoles, Cristèle conta a história de Salomé (Lua Michel, atriz mirim de olhos expressivos), menina que está passando as férias de verão no povoado onde nasceu sua mãe e mora parte da família materna. Companheira da avó (interpretada por Ester Catalão), ela é apresentada à morte na abertura. A câmera ora mostra a pequena observando a choradeira e a ladainha à beira do caixão de um homem, ora assume esse olhar ao se tornar subjetiva, assim tentando reproduzir o misto de confusão e encantamento provocado na criança por aquela ocasião. O que se destaca desde o princípio é a valorização da sensibilidade de uma inocente instigada por comportamentos, preconceitos, culturas e superstições de toda a sorte.
Alma Viva se lança na difícil tarefa de registrar o intangível, de tentar expressar por meio de imagens e sons a percepção da menina diante desse mundo ao mesmo tempo estranho e familiar. O filme também captura a importância das crenças religiosas para os moradores do povoado. Alertada por sua avó sobre a necessidade de se proteger para um espírito não baixar nela, a menina corre à cozinha a fim de misturar água e sal numa tigela, como se aquilo se transformasse automaticamente num escudo contra o sobrenatural. Nessa cena indicativa, Cristèle Alves Meira não enfatiza o gesto em si, mas aquilo que ele significa, ou seja, a obediência de quem respeita a matriarca da família e, de quebra, a fé da idosa na eficácia de algo contra fantasmas. Ao longo da trama seguiremos acompanhando Salomé, transitando pela localidade a bordo de sua experiência que oscila entre curiosidade e medo. Somos privados da capacidade de afirmar se o fantástico realmente existe ou se ele é um produto das crendices passadas automaticamente através das gerações. A realizadora não está preocupada com as respostas às perguntas lançadas com muita perspicácia no decorrer da história, assim se afastando de uma proposta determinista e/ou meramente informativa. A isso Cristèle prefere sublinhar o mistério, assumir que há coisas simplesmente inexplicáveis e que não deveriam ser mais que especuladas.
A segunda morte existente no longa português reforça a importância do desconhecido, mas sem com isso perder de vista tensões geradas por aspectos e demandas humanos, demasiadamente humanos. Enquanto vomita aos borbotões, a avó admirável/exemplar culpa uma vizinha por supostamente a ter envenenado, acusando-a de colocar alguma coisa (natural ou sobrenatural) nos peixes com a finalidade de atentar contra a vida alheia. Desse modo, a mulher mais velha e experiente confere um significado ao seu mal estar, atribuindo culpa e induzindo a menina a acreditar piamente que uma rusga do passado motivou um assassinato encardo pelos médicos como morte natural. Novamente, o relevante da cena está em seu sentido para a compreensão daquela comunidade e de seus habitantes peculiares. Cristèle Alves Meira enfatiza a dramaticidade dessa transmissão desesperada de “conhecimento” disfarçada de incriminação. Assim, mais importante que as implicações práticas (ainda que elas sejam fundamentais) está o impacto emocional na menina que tem esse seu olhar enviesado pelo trauma. Portanto, Salomé “compra” facilmente as crendices da avó justamente por conta do teor comovente daquele instante em que está prestes a perder um de seus entes queridos. A densidade tem a ver com a mise en scène, com a disposição de elementos e pessoas em cena em função de uma atmosfera.
À medida que Salomé assume certas “heranças”, talvez por se sentir na obrigação de seguir com as crenças da avó, Alma Viva torna ainda mais indiscerníveis o ordinário e o extraordinário. Será que a menina, em algum momento do enredo, foi realmente possuída pela avó ou estava respondendo de modo psicologicamente compreensível a um trauma que marcará sua infância? Mantendo-se fiel à ideia de não explicar, preservando o mistério como elemento instigador, Cristèle Alves Meira se recusa a fornecer resoluções, assim se distanciando de uma tendência didática muito observada (pois recorrente) no cinema contemporâneo tão preocupado com a famigerada e técnica “retenção da audiência”. Quanto ao elenco, Lua Michel se destaca ao expressar a puerilidade da Salomé afetada pela superstição da comunidade que evoca seus mortos ao cotidiano, seja como forma de presentificar memórias (a fim de combater a saudade) ou para justificar a agressividade entre vizinhas. Essa produção portuguesa é daquele tipo que nos convida a prestar muita atenção, a embarcar numa jornada pessoal que espelha toda uma comunidade ao redor, desmontando seus pilares e fundações. O olhar infantil da protagonista sendo corrompido por ensinamentos e credos dos mais velhos, as tensões familiares amenizadas pela rotina, as animosidades na localidade pacata, tudo é motivado pela partida da matriarca, adorada por uns e difamada por outros. Depois dela será preciso revolver essa terra.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 8 |
Francisco Carbone | 8 |
Celso Sabadin | 7 |
Chico Fireman | 5 |
Alysson Oliveira | 8 |
Leonardo Ribeiro | 7 |
MÉDIA | 5.8 |
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