Crítica

Durante as filmagens de Tubarão (1975), seu primeiro grande sucesso, Steven Spielberg comentou com o amigo Richard Dreyfuss – um dos protagonistas do filme – seu apreço pelo clássico Dois no Céu (1943), estrelado por Spencer Tracy e Irene Dunne. “É um dos dois únicos filmes que já me fizeram chorar – o outro foi Bambi (1942)”, afirmou o cineasta. Qual não foi sua surpresa quando o astro (que ganharia o Oscar dois anos depois por A Garota do Adeus, 1977) declarou também ser um entusiasta da história do piloto da Segunda Guerra Mundial e sua apaixonada, que sofre em terra firme ao vê-lo se arriscar nos céus. Uma vez revelada essa sintonia, os dois se comprometeram em realizar, juntos, uma refilmagem. As coisas quase aconteceram no início dos anos 1980, mas Spielberg confessou não ter maturidade suficiente para abordar essa trama naquela época, e por isso esperou por quase uma década para entregar Além da Eternidade. E ainda que o filme tenha seus bons momentos, talvez tivesse sido melhor esperar mais alguns anos.

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Além da Eternidade é o trabalho mais declaradamente romântico de toda a filmografia do diretor. Sem grandes arroubos de originalidade nem peripécias de efeitos especiais, o enredo se ocupa em mostrar a rotina de Pete Sandich (Dreyfuss), um piloto que agora, nessa versão modernizada, ganha a vida apagando incêndios com seu avião-pipa. Seu melhor amigo é Al (John Goodman, sem muito o que fazer além de servir como alívio cômico), companheiro nos ares e também no chão, e sua garota é Dorinda (Holly Hunter, com uma vivacidade que cai bem ao personagem), a controladora de voo que sofre com suas peripécias e riscos desnecessários que ele parece perseguir quando em atividade. Indecisa em assumir um compromisso com esse homem que ama, porém parece não ter muito apreço pela própria vida, ela tenta lhe dar um ultimato, esperando que com isso ele decida buscar outra ocupação, menos perigosa e mais estável. Porém bastou mais uma jornada para que tudo chegasse ao fim.

Bom, não chega a ser nenhum mistério o fato do protagonista morrer na metade do filme. Só que, ao contrário do inovador Psicose (1960), em que a ausência do personagem principal é justamente o mistério que conduz o restante da ação, em Além da Eternidade Pete continua presente através de seu espírito, que é convocado para ajudar um piloto novato a dar os primeiros passos em sua carreira. Coube ao inexpressivo Brad Johnson a responsabilidade de defender este personagem fundamental. Pois precisamos acreditar que, além do sonho de voar, ele também está apaixonado pela mesma mulher do falecido, Dorinda – que, solteira, termina como corresponder às investidas do jovem pretendente. Pete, portanto, precisará se desligar de vez dos seus assuntos terrenos, tanto dentro como fora dos aviões, para ascender e permitir a felicidade dos outros, indo, enfim, em busca da sua própria realização.

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Assumidamente espírita, Além da Eternidade é infeliz em uma ampla gama de aspectos. Pra começar, naufragou nas bilheterias por ter sido lançado nos cinemas mais ou menos na mesma época de outro título de trama bastante similar, porém com resultados muito superiores: Ghost: Do Outro Lado da Vida (1990) – as comparações foram inevitáveis. Depois, há alguns equívocos no elenco, como os citados Brad Johnson (este ineficiente) e John Goodman (e este subaproveitado). Pra terminar, temos a mão pesada do próprio Spielberg, que parece não conseguir dosar bem os dois extremos da história, indeciso entre o romance lacrimoso ou a comédia de situação. Mas há, no entanto, um grande acerto em cena, e essa é a presença de Audrey Hepburn (em sua última participação nas telas, antes de falecer em 1993) como o anjo Hap. Substituindo Sean Connery, ela oferece graça, leveza e inteligência a um tipo que poderia ser tudo, menos sem personalidade. Por ela, é até válido ir de um plano a outro. Mas, pelo filme em si, resta apenas o registro – e a certeza de que todos já estiveram em melhores situações, tanto antes quanto depois.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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