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Sinopse

Nascido numa colônia de imigrantes ucranianos situada no Paraná, Guto saiu da casa dos pais aos 11 anos de idade por conta de questões culturais e religiosas. Um pouco mais de 30 anos depois, ele retorna ao lugar de onde saiu.

Crítica

Ao questionar um dos seus familiares mais idosos sobre o motivo por qual esse senhor nunca demonstrou disposição em retornar à sua terra natal, a resposta que obteve foi bastante simples: “já estou velho demais para uma viagem como essa e, além do mais, assim que morrer, é para lá que irei. A minha vida eterna é na Ucrânia”. Esse sentimento de pertencimento, ainda que a distância entre um ponto e outro seja de uma vida inteira, percorre a narrativa de Aldeia Natal, mais um longa dirigido por Guto Pasko a discorrer sobre sua herança familiar, algo que já havia feito em títulos como Entre Nós, O Estranho (2017) e Sim, Também Somos Ucranianos (2013), entre outros dos seus trabalhos. A diferença, dessa vez, é a intensidade do mergulho pessoal que realiza, abandonando o posto de mero observador para se assumir não apenas como personagem, mas também protagonista da história que se desenrola em frente às câmeras. Essa proximidade, que poderia contar a favor em termos de entendimento e identidade, acaba por lhe prejudicar justamente no que tinha de mais autoral, impedindo um saudável distanciamento do seu objeto de análise, o que termina por inviabilizar a amplitude do discurso. O efeito, portanto, tem tudo para ser catártico ao realizador, mas a mais ninguém com a mesma intensidade.

O fato de ser descendente de imigrantes ucranianos se revela em cena como algo determinante para Guto Pasko. Mas não se trata de apenas isso. Há uma dívida em jogo, uma ferida aberta por tempo demais que ainda não cicatrizou. Nascido em uma pequena cidade no interior do Paraná, a forte influência religiosa e as tradições e costumes que carregam por mais de século como símbolo de onde vieram tanto oferece segurança e conforto, como parece ter sido o caso de seus pais e dez irmãos, mas também pode representar angústia e falta de horizontes, como o que se sucedeu com o diretor. O único a ter saído de lá em busca de uma alternativa de vida a partir do contato com outras histórias e culturas, agora retorna para esse há muito aguardado e devido acerto de contas. A promessa, ainda no nascimento, de que seria entregue ao sacerdócio; a fuga consequente e uma rebeldia que nem esperou a adolescência para se manifestar; a falta de amparo daqueles mais próximos e a busca de reconhecimento entre parentes afastados; a possibilidade de construção de uma personalidade distante dessa bagagem, mas que, ainda assim, carregasse os traços que lhes são característicos. Um movimento tanto de fuga como de aproximação.

Aldeia Natal, portanto, não é apenas sobre essa retomada de laços, mas também sobre a reconstrução de alguns desses perdidos – ou desfeitos – com o tempo. O realizador primeiro volta à casa dos pais, aos poucos vai entrando em contato com os irmãos, e a partir dessas conversas, as histórias vão surgindo. No entanto, aqui já começam a se tornar mais visíveis os tropeços. Há uma evidente falta de um roteiro mais conciso, que diga para onde ir e como. Em um documentário, é certa a necessidade de se estar pronto para o improviso e o acaso. Porém, eis aqui um relato de escavação pessoal, uma busca íntima cujas perguntas provavelmente ressoavam entre esses por não apenas anos, mas décadas. Justamente por isso, essas abordagens, ao menos da forma como se dão em cena, soam estranhamente apressadas, mas, também, desajeitadas. O ápice é a série de depoimentos durante um almoço de Natal. O que supostamente seria apenas um desfile de lembranças aos poucos vai adquirindo caráter cada vez mais denso e trágico, com pedidos de desculpas e lágrimas em profusão. A exposição é tamanha que se faz quase impossível impedir que a audiência não se contamine pelo mesmo constrangimento visto na tela. Há, enfim, uma nítida cegueira quanto aos limites narrativos.

Porém, assim que tais diretrizes em torno dessa única família começam a se revelar mais sólidas, uma nova – e abrupta – quebra se impõe. De uma hora para outra, sem preparo ou aviso prévio, Pasko pega pai e mãe – aqueles que, em tese, teriam sido os responsáveis pelas rusgas reviradas até então – e, com os dois debaixo dos braços, aparece novamente já em Lviv, uma das maiores cidades da Ucrânia. Lá estão, em um outro país e improvisando em uma língua estranha aos ouvidos brasileiros, em busca de suas origens. As pesquisas mais detalhadas, aparentemente, já foram feitas, e, munidos desses documentos, partem atrás das pessoas que, possivelmente, sejam seus familiares distantes. Não mais do que o compartilhamento de um sobrenome e, se derem sorte, o registro de um antecedente afastado cujas raízes tenham sido as mesmas tanto de uma árvore genealógica, como de outra. Nada, portanto, que os faça mudar do olhar que desfrutam sobre si mesmos. É mais como uma curiosidade, uma nota de rodapé que acaba ganhando ares grandiosos, sem, por outro lado, proporcionar a profundidade necessária ao discurso até aquele momento empregado. É quase como um capricho do cineasta, que exibe comprometimento na causa que aponta, mas pouco agrega com o que de novo, por fim, expõe.

Assim, eles vão e voltam, e os mesmos problemas de outrora seguem vivos, mais relevados do que tratados com a devida urgência. A fuga do primogênito, o sequestro de uma irmã, a dívida parental com a Igreja, a presença dessa nos dias de hoje, a relação dos que ficaram com aquele que se foi, a volta desse e se lhe é capaz se ver como parte desse todo, ainda que os remendos ou feridas sigam visíveis e incômodos. Aldeia Natal é tanto sobre os que partiram como a respeito desses que insistem em retornar a um lugar que não mais reconhecem e do qual não se veem como elemento intrínseco. Há perguntas por todos os lados, mas a seleção de quais responder nem sempre acaba por demonstrar sintonia com a forma como tal efeito se dá entre os espectadores. Os caminhos a serem seguidos são muitos, mas é de se questionar também se são válidos ou mesmo pertinentes, uma vez que é justamente nessa particularidade – e, portanto, na ausência de uma mais forte identificação – que o texto irá se perder. Com um passo atrás, talvez o resultado tivesse sido distinto. Mesmo assim, entre lá e cá, o que se verifica é um caminho em comum. É de esforçar, portanto, para descobrir a direção a seguir.

Filme visto em Recife em dezembro de 2022, durante o 26º Cine PE: Festival do Audiovisual

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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