Crítica


4

Leitores


5 votos 6.8

Onde Assistir

Sinopse

Um presídio em Rondônia propõe uma nova metodologia para reinserir os detentos na comunidade. Durante o dia, eles participam de diversas formas de terapias, quando são levados a compreender a extensão de seus atos e os traumas do passado. Durante a noite, permanecem na cadeira. Enquanto isso, um novo presídio é inaugurado na região, o que talvez afaste os prisioneiros desta iniciativa pioneira.

Crítica

Prisão e ressocialização ainda são tópicos muito encarados a partir de estereótipos e lugares-comuns nocivos. Talvez a fala mais impactante de Ainda Estou Vivo, documentário selecionado à competição do 25º Cine PE, é a do detento que demonstra consciência quanto às estratégias do sistema carcerário para fomentar revoltas e tensões, entre outras estratégias, com o intuito de provocar a mortalidade dos internos. No entanto, curiosamente, o cineasta André Bomfim destaca poucos desses momentos de autorreflexão. Assim, passa longe de um filme ao qual poderia muito bem ter recorrido como referência, o italiano César Deve Morrer (2012). O longa-metragem dirigido pelos irmãos Paolo e Vittorio Taviani observa os efeitos (cinematográficos, humanos e sociais) nos presidiários levados a encenar a peça Júlio César, de William Shakespeare. A comparação não é sem propósito, pois no filme brasileiro o recorte também enfatiza um projeto que visa facilitar a ressocialização dos apenados. Porém, em vez de utilizar a arte como mecanismo propulsor (às vezes um gatilho poderoso), aqui está em voga a iniciativa social baseada em terapias alternativas, tais como cromoterapia, meditação, reiki e constelação familiar. No entanto, a intenção principal é bastante vaga: falar do projeto em si? Dos efeitos que as práticas têm nos presos? Questionar a validade de uma abordagem excepcional?

Diferentemente dos irmãos Taviani, que fundem camadas de encenação para realçar o poder transformador da arte em César Deve Morrer, o cineasta André Bomfim adota uma posição cômoda que o coloca como um observador à parte. A maneira como ele seleciona certos fragmentos do discurso dos terapeutas, bem como das respostas emocionais dos presos, não está a serviço da construção de uma lógica funcionalista. Não fica bem claro, por exemplo, qual é o posicionamento do cineasta diante de atividades polêmicas como a constelação familiar, atividade que tem causado enormes controvérsias no meio jurídico justamente por ser uma prática pseudocientífica que toma emprestadas certas estratégias do psicodrama. Porém, embora a câmera se esforce para manter-se distante de julgamentos, elogios e/ou críticas mais evidentes, a ênfase na emoção dos condenados durante as constelações é uma maneira concreta de enaltecimento. Aliás, esse aspecto é o que ganha mais atenção em Ainda Estou Vivo. Diversas encenações são observadas de perto para mostrar a disposição dos homens e mulheres por buscar o perdão das vítimas ou ao menos para tentar compreender os sentimentos que os atravessam. Fica implícito o desejo de melhorar antes da reintegração à coletividade. Mas, mesmo assim é difícil saber qual é o foco principal, de qual fio condutor estamos falando no final das contas.

Às vezes parece que o projeto é protagonista. Senão, para que serviria a cena do líder da iniciativa conversando sobre praticidades com um encarregado de reavaliar o terreno para a construção da nova sede? Porém, temos pouco do funcionamento das atividades em conjunto, apenas relances das dinâmicas de grupo com resultados bem parecidos. Noutras vezes parece que a espinha dorsal de Ainda Estou Vivo é a liga formada pelas pessoas que fazem parte dessa estratégia, especialmente os homens e mulheres trancafiados. Há personagens mais recorrentes, como o sujeito que mente ao filho pequeno dizendo que a cadeia é o seu trabalho e outros que infelizmente são negligenciados, vide o jovem que chega a se emocionar na constelação e que constantemente pode ser visto tendo pequenas agonias no fundo da imagem. E permanece a questão: a partir de qual aspecto o filme pretende ler todos esses componentes potentes? Seguimos tentando desvendar e chegamos à alternativa do contraste. André Bomfim poderia realçar como o cotidiano numa cadeia comum de Rondônia é quase antagônico ao ambiente terapêutico no qual se anuncia uma possibilidade efetiva de transformação. Mas, para isso teria de ir além da meia dúzia de planos intermediários e mornos da rotina nas celas lotadas e predominância de ócio. Vamos lá, temos mais um viés: a construção da penitenciária de segurança máxima.

Lá pelo último terço de Ainda Estou Vivo, são abordadas as modificações que podem acontecer quando um novo presídio for inaugurado. O efeito colateral imediato seria a transferência de alguns condenados que, assim, precisariam se retirar do projeto. E o filme novamente passa por cima das potencialidades dessa expectativa, preferindo reiterar uma observação aparentemente sem pontos de vista contundentes. Não fossem as poucas manifestações de apreensão por parte de alguns sujeitos com medo de voltar ao modelo de encarceramento tradicional (e defasado), o filme passaria batido por essa situação sinalizada na sinopse como "O" principal problema. Os melhores instantes do documentário são os pequenos flagrantes. Como o da criança inocentemente mesclando ludicidade e realidade ao dizer que gostaria de brincar com o pai de polícia e ladrão (eles estão numa extensão do cárcere) ou o do padre que durante seu sermão afirma sabiamente que não precisamos de investimentos na construção de mais cadeias, mas sim em mecanismos de ressocialização. Para finalizar, é preciso voltar à suposta neutralidade diante de controvérsias como a constelação familiar, terapia fundamentada numa dissolução de padrões hereditários que impediriam o desenvolvimento humano. Quando presidiário reproduz o discurso da consteladora na conversa com o filho, a câmera observa esse resultado como algo bom. E assim, há um elogio implícito à prática. Nada contra a apologia, mas ao fato de ela ser velada, de estar camuflada numa estratégia narrativa que tenta se vender como direta e observacional.

Filme visto durante o 25º Cine PE, em novembro de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *