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Sinopse
A Voz de Deus observa, com o crescimento do neopentecostalismo no Brasil da última década, um fenômeno popular que ganhou os púlpitos das igrejas e as telas dos smartphones: a pregação religiosa ministrada por crianças. Mergulhando no universo familiar e da fé de dois pastores mirins de gerações distintas, revela a infância e a juventude escondidas sob a construção dessas figuras públicas. Documentário.
Crítica
Miguel Antunes Ramos não é, necessariamente, um novato. Porém, A Voz de Deus é tanto seu longa de estreia como um projeto maduro, fruto de um olhar experimente. Afinal, foi realizado ao longo de vários anos – quase uma década – e, se lá no começo, o cineasta por trás das câmeras era alguém jovem e curioso, essas mesmas características podem não ter mudado, mas certamente foram mudando por meio das vivências acumuladas neste período. Isso se comprova pela própria premissa perseguida por quase 90 minutos de projeção. Se no início a proposta era se debruçar sobre o fenômeno dos pastores-mirins, crianças pregadoras que têm se multiplicado em igrejas e congregações evangélicas por todo o país, no final do que se vê é o estudo de dois casos em particular, para a partir deles viabilizar uma reflexão maior e mais abrangente. As responsabilidades reunidas são imensas. Assim como são limitadas tais conclusões. Pois o que pode servir a alguns, certamente será lido de forma diversa por outros. E o realizador se mantém neutro, numa postura que talvez seja condizente com os riscos assumidos, mas destoante frente ao meio pelo qual se desenvolve. Afinal, se nem mesmo o jornalismo pode se dar o direito de ser imparcial, o que falar do cinema enquanto manifestação artística e depoimento social?
São dois os pontos de interesse de Ramos em A Voz de Deus. O primeiro se chama Daniel Pentecostes (o sobrenome, se artístico, parece adequado; se natural, se mostra mais um caso de nome que condiz com o destino). O segundo é João Victor Ota. Ambos são impressionantes. Crianças que, desde muito pequenas – e fala-se de 6, 7, 8 anos de idade – conseguem capturar as atenções de plateias inteiras e diversas, que absorvem seus dizeres como tábuas de salvação. Há, no entanto, uma dicotomia aqui. O que seres tão pequenos e pueris teriam a dizer sobre as verdades da vida? A leitura, portanto, é de que estes seriam apenas vasos condutores, ou seja, estariam sendo utilizados por forças maiores por meio deles se fazerem ouvidas. Em um cenário cujo fanatismo frequentemente se faz presente, tal interpretação não soa tão absurda. Porém, da mesma forma, quanto mais estas crianças crescem, tornando-se adolescentes e depois adultas, menor será a curiosidade que despertam. A inocência não mais lhes pertence. Assim como a capacidade de atração que antes exerciam igualmente irá se dispersar.
Porém, o que resta destes protagonistas, aqueles que desde cedo ouviram que seriam agentes transformadores, para dois, três ou até mesmo cinco anos depois serem colocados de lado, como se não mais fossem úteis a uma causa maior? São simplesmente descartados, abandonados, ignorados. Daniel acumula mídias físicas (CDs, DVDs) produzidas para difundir seus sermões, material esse que hoje ninguém mais quer adquirir. João acabou servindo de chamativo para o comércio online conduzido pelos familiares, como se os milhões que acumula como seguidores no Youtube e demais redes sociais fossem suficientes para lhe garantir um futuro auspicioso. O ostracismo, de uma forma ou de outra, os espera. É um fim para o qual se direcionam e do qual não conseguem escapar. Na ausência de um pai, de um pastor, de um guia capaz de lhes oferecer a orientação necessária, são explorados até o último suspiro. Depois, resta-lhes apenas a irrelevância.
O diretor acompanha o desenrolar deste triste desfecho para os seus dois escolhidos. Mas não interfere, não agrega posicionamento, não propõe alternativas, nem busca por causas ou origens para essa situação a qual se dedica. Não vai atrás de culpas ou culpados, ao mesmo tempo em que deixa o campo aberto para que cada um tire suas próprias conclusões. Tal posição merece respeito, mas também possui sua cota de risco. É como um fotógrafo de guerra, que retrata para a posteridade aquilo no qual não interfere. Aqui, da mesma forma, ele registra, mas não exerce opinião nem juízo de valor. As imagens que falem por si. E este é o recado. Talvez seja esperar demais, em um contexto repleto de tantas carências, que essa reflexão alcance seu objetivo. Mas também como fazer diferente? Daniel e João, assim como tantos outros, são, de fato, meios para um fim. Mas este nunca lhes disse respeito, pois atende interesses maiores. Se desse plano ou não, bom, cabe ao espectador decidir. Os elementos estão em cena. E eles são mais do que suficientes para apontar o caminho.
Filme visto durante o 14º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2025


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