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Sinopse

Inocentemente, um serralheiro e sua filha se envolvem numa disputa sangrenta quando traficantes escondem cocaína roubada na propriedade da família deles.

Crítica

Diante de um filme tão genérico como A Terra e o Sangue, talvez seja mais relevante refletir especificamente sobre certos mecanismos nele contidos, os que dizem respeito à propagação de estereótipos. O cinema tem a capacidade de fazer mensagens e preconcepções se cristalizarem em nossos imaginários, às vezes de forma sutil e/ou subliminar. Ainda que sinalize uma vontade de preencher as lacunas da ação com questões de ordem familiar, o cineasta Julien Leclercq não consegue camuflar a superficialidade da trama, sequer oferecendo-lhe esses dados supostamente mais atrelados aos laços parentais de modo íntimo. Temos o pai defendendo a filha como um leão; o bandido enfurecido após o assassinato de seu irmão cúmplice; e um rapaz fazendo uma besteira enorme ao atender o “chamado do sangue”. No fim das contas, essas conexões pouco importam, pois são utilizadas apenas como muletas para mostrar arroubos heroicos, ferocidades ou fragilidades ordinárias.

Todavia, voltando aos padrões aqui disseminados, A Terra e o Sangue fortifica levianamente alguns postulados, vendendo-os como simples subterfúgios. O primeiro deles é justamente o fato de Yanis (Samy Seghir) ser um ex-presidiário carregando a desgraça ao domínio dos inocentes que outrora lhe ofereceram uma oportunidade de emprego. Não há qualquer necessidade dele ser lido como um apenado em liberdade condicional, pois o que o leva às más decisões é o vínculo com o meio-irmão. Ou seja, há o reforço canhestro de uma ideia do tipo “não confie em pessoas que já cometeram crimes, pois elas, mais dia, menos dia, trairão sua confiança”. O segundo é o  destino do idoso que acolhe uma mulher desesperada por ajuda. Qual o prêmio que ele recebe? Alguns tiros no peito. Portanto, sua solidariedade foi “compensada” com a morte brutal. São duas dinâmicas que, subterraneamente, tonificam o imperativo do egoísmo e a disseminada cultura do medo.

A Terra e o Sangue poderia contextualizar ambas as circunstâncias de maneira distinta, evitando os ruídos dessa frivolidade. Não há indícios de que o filme celebre tais distorções, mas as apresenta quase automaticamente, sem ponderar acerca da ressonância que seu discurso eventualmente possa alcançar. Julien Leclercq parece não compreender que toda opção estética, narrativa e dramatúrgica tem carga ideológica. Por isso, fica somente concentrado em mostrar o protagonista, Saïd (Sami Bouajila), homem que faz das tripas coração para defender-se dos bandidos que batem à sua porta de supetão. Desenhado desde o início como um desenganado pelos médicos, pois vítima de um agressivo câncer de pulmão, ele sequer é entendido efetivamente como sujeito sem perspectivas de futuro e que, por isso, age instintivamente com destemor. O longa logo cai numa dinâmica tola, com cidadãos comuns de um lado e vários vilões caricaturais do outro.

Outra concepção aparentemente menor, mas sintomática da imprudência de A Terra e o Sangue, é o papel da mulher. Na verdade, há duas no filme. Uma, vista em menos de um minuto, é a incauta vizinha que direciona os malfeitores à serralheria em que a ação se desenvolve. A segunda, Sarah (Sofia Lesaffre), filha surda do protagonista, é rapidamente transformada em alguém a ser protegida, ou seja, incapaz de defender-se em meio à testosterona que define os rumos do enredo. Se, ao menos, Julien Leclercq imprimisse tensão no enfrentamento à bala, mas não. Ele se restringe ao caráter ordinário do velho e surrado jogo de gato e rato. Nem ao menos o cineasta potencializa a singularidade do cenário, chegando a evitar desavisadamente a compreensão espacial durante os embates. A incapacidade para substanciar os personagens se encarrega de esvaziar dramaticamente o longa, tornando perseguições e mortes tão impactantes quando o mero corte de uma tábua.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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