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Sinopse

Para tentar reduzir a criminalidade a menos de 1% ao longo dos outros 364 dias do ano, uma organização decide testar uma teoria sociológica em um bairro de Nova Iorque e se, em um só dia, todas as cobaias cometerem os crimes que desejarem, o impulso de violência será contido pelo resto do ano. Mas quando a violência dos opressores atinge a fúria dos marginalizados, o contágio explodirá pelas fronteiras da província e se espalhará por todo o país.

Crítica

Quarto filme da saga Uma Noite de Crime, A Primeira Noite de Crime mostra como tudo começou. Não dirigida por James DeMonaco – responsável pelos demais, aqui apenas roteirista –, a produção tem um potente subtexto político-social que ameniza determinados exageros e deslizes. A trama se passa num futuro próximo. Os Estados Unidos são chefiados pelo partido “novo” que decide fazer um experimento de expurgo da agressividade da população. Como amostragem, é escolhida a localidade de Staten Island, distrito de Nova York. Durante 12 horas a noção de crime é abolida e toda atrocidade se permite. Vendendo à opinião pública a medida como forma de diminuir a criminalidade, uma vez que, por essa lógica torta, a catarse coletiva ajudaria a reduzir a agressividade, o governo fura os protestos de pessoas e entidades contrárias, passando à fase do recrutamento. O cineasta Gerard McMurray utiliza a narrativa dos noticiários para contextualizar todo esse imbróglio, fazendo questão de sublinhar as intenções nefastas por trás de uma ação totalmente tendenciosa.

A Primeira Noite de Crime sustenta durante um bom tempo o interesse sobre essa construção de uma posição pertinente. O Estado convence os cidadãos a participarem com um portentoso incentivo financeiro. Logo, os pobres assumem os maiores riscos. A crítica ferina é direta, sem filtros que possam camufla-la. Outro apontamento corajoso surge da óbvia segregação étnica, vide a predominância afrodescendente entre os peões do jogo. Fica evidente que a nova ordem do país utiliza o expurgo para promover uma verdadeira chacina nos guetos, exterminando principalmente pessoas pobres e negras. Entre uma cena genérica e outra, driblando a, talvez, necessidade comercial de ceder a pressões, o realizador lança luz sobre essa observação da brutalidade estatal direcionada às populações periféricas. Não falta, inclusive, uma alusão ao famigerado espancamento de Rodney King pela polícia em 1991. Numa cena, agentes públicos mascarados brutalizam um sujeito, com a bandeira norte-americana tremulando ao fundo. Não fosse a banalidade das relações dos personagens principais, tais apontamentos reverberariam mais.

Há ingenuidades em A Primeira Noite de Crime, como o arrependimento da psicóloga comportamental que criou o experimento, vivida por Marisa Tomei, e a redenção do “dono” do bairro, transformado num homem com rompantes de heroísmo por amor. Aliás, é notável a guerra de forças entre a subversão e a concessão. Dmitri (Y'lan Noel), o gângster mais casca grossa do pedaço, é artificialmente ora descrito pela câmera como um sujeito impassível, capaz das maiores atrocidades, ora entendido como um menino que apenas tomou atitudes erradas diante da encruzilhada imposta pela miserabilidade. É bastante incipiente essa análise social basilar, com as coisas se restringindo a postulados superficiais, principalmente no contraponto do bandido, sua ex-namorada, a agora regenerada Nya (Lex Scott Davis). Excetuando essa oscilação desajeitada entre o heroísmo e sua antítese, o longa-metragem consegue mesclar satisfatoriamente a discussão social com momentos de pura força e violência. Não há alívio visando preservar suscetibilidades. O sangue corre à vera.

Nya tem um posicionamento completamente contrário à aderência ao crime como saída da penúria. Ela é a irmã-coragem de um rapaz frequentemente atraído por oportunidades de ganhar boas quantias de dinheiro em pouco tempo. Dmitri é aquele que não consegue desvencilhar-se do personagem encarado como um rei das cercanias. Todavia, Gerard McMurray investe pouco num aprofundamento de tais tragédias pessoais, diluindo-as num enredo que, ainda assim, acerta petardos circunstanciais no chamado “sonho americano”. Os malfeitores paramentados com as vestes da Ku Klux Klan, o mercenário obviamente alusivo a comandantes nazistas e os corpos negros acumulados pela cidade são sintomas claros do direcionamento da crítica mordaz. A Primeira Noite de Crime é inconsistente, pois dispersa sua pungência em sequências de ação genéricas. Porém, o saldo é positivo, exatamente pela maneira como nega a alienação, mostrando homens poderosos conspirando contra os menos favorecidos, então aproximando a ficção da dura realidade, não sem solavancos, mas com vigor e consciência.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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