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Sinopse

Giovana e Yago ficam presos num apartamento logo depois de ser conhecerem. Eles precisam conviver como um  casal enquanto esperam a dissipação de uma misteriosa novem rosa que pode ser mortal.

Crítica

Antes que seja tentador demais compreender A Nuvem Rosa como uma bem pensada metáfora dos tempos pandêmicos ditados pela Covid-19, a cineasta Iuli Gerbase introduz a nossa experiência com uma cartela informativa. Por meio dela ficamos sabendo que o filme foi escrito em 2017 e rodado em 2019. Portanto, ele foi criado, preparado e registrado antes de nos acostumarmos com as palavras “distanciamento”, “aglomeração”, “isolamento”, entre tantas outras que passaram a ser recorrentes em nosso vocabulário cotidiano. De qualquer maneira, pela conjuntura atual, a estreia em longas-metragens da filha do cineasta Carlos Gerbase e da produtora Luciana Tomasi – grandes nomes do cinema gaúcho –, inevitavelmente se junta aos produtos audiovisuais imaginados como resposta/alusão ao cataclismo. A trama mostra uma tóxica nuvem rosa aparecendo nos céus e impondo um fechamento quase à vácuo das pessoas em suas casas, estabelecimentos comerciais, enfim, onde estivessem naquele instante pontual. Apesar da especificidade da ameaça, há temas ali emprestados da realidade e reconfigurados pelas limitações. A dificuldade de se relacionar talvez seja o principal, mas é possível perceber também a vontade de falar da virtualidade diminuindo (será?) as distâncias.

Yago (Eduardo Mendonça) e Giovana (Renata de Lélis) são pegos pelo evento extraordinário enquanto se conhecem. Obrigados pela nuvem rosa a permanecer juntos sob o mesmo teto, passam por diversas fases nos anos seguintes. Sim, pois A Nuvem Rosa acontece num período mensurável pelo nascimento/crescimento do filho dos protagonistas, ou seja, a situação extrema se estende até o limite do imponderável. Iuli Gerbase distribui flutuações emocionais, apresenta instantes de felicidade e melancolia em semelhante medida, mas não elege determinados elementos/perspectivas-chave como pilares. Exemplo deles, o desenho do rearranjo da coletividade para viver num contexto ainda mais repressor do que o imposto pela Covid-19. É dito que as pessoas não podem sair, que o governo instalou um sistema de tubos para entregar mantimentos e demais produtos. No entanto, a cineasta evita expandir as informações sobre essa lógica de convivência reconfigurada brutalmente pela necessidade. O foco se mantém fechado nas experiências oscilantes dos personagens encerrados no apartamento espaçoso. E há certas vistas grossas nessa lógica interna que propositalmente não é expandida. Yago se comunica com o pai doente que precisa dos cuidados de um enfermeiro. Quando este morre, como o senhor lida com as limitações que antes lhe impediam a autonomia?

Essa falta de atenção aos detalhes de um mundo virado do avesso por anos (provavelmente mais de uma década) limita a investigação do que acontece aos protagonistas. As interações de Giovana com a amiga solitária, bem como as ligações em vídeo à irmã menor, são meros escapes circunstanciais da dinâmica doméstica viciada. Iuli não aproveita esses dois elos externos para sublinhar as características da personagem feminina (aliás, questões de gênero não entram nesse jogo) com a qual nos relacionamos mais demoradamente. Tampouco, a cineasta faz das experiências das coadjuvantes motores para compreendermos a heterogeneidade das vivências restringidas pela nuvem rosa. A jovem realizadora fica num meio termo entre radicalizar o isolamento de Yago e Giovana – como se imaginariamente pouco importasse o além das paredes do apartamento – ou estabelecer vínculos possíveis entre o casal e a realidade transfigurada, a desse “novo normal”. Num ritmo bastante compassado, o filme prossegue tentando expressar formalmente (via montagem, movimentação dos personagens e direção de fotografia) o tédio com o qual as pessoas precisam se acostumar até um nível desesperador. Nem sempre essa opção pela atmosfera semelhante a um mormaço é eficiente. Às vezes o conjunto se ressente de apontamentos e sugestões que o tornem consistente e quiçá até pontiagudo.

Entre os destaques positivos de A Nuvem Rosa, sobressai a direção de fotografia assinada por Bruno Polidoro, um dos profissionais mais talentosos da área no Brasil. Em certo sentido, a beleza e a eficiência da concepção dos planos compensam fragilidades (facilidades) do roteiro. O deslocamento dos personagens para as margens do quadro e a iluminação – quase sempre com filtro/luz rosa para demarcar a presença intermitente da ameaça/impossibilidade – são fruto de uma composição que acentua as rubricas sensoriais. Iuli Gerbase lança mão de vários assuntos com potenciais enormes, mas prefere não se apegar demasiadamente a uns em detrimento dos outros, talvez tentando com isso garantir uma ideia de panorama. A exaustão emocional; as mudanças de humores; a ausência da fisicalidade nas experiências eróticas; a virtualidade como uma droga altamente viciante; as questões filosófico-existencialistas diante de uma nova condição humana; as diferenças entre viver isolado e ter nascido no isolamento. Tudo isso está contemplado no filme, mas diluído num progresso que tende sempre a convergir para as variações do discurso amoroso. A realizadora parte do elo afetivo para tratar da complexidade imposta pelo apocalipse. Por um lado, o resultado parece um curta expandido pela repetição de rotinas modorrentas. Por outro, às vezes soa como a condensação de uma série de TV, haja vista o modo de abordar rápida e superficialmente tantos meandros e ponderações trazidas à tona.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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