Crítica

Que Hollywood é ambiente cruel e impiedoso, muito já se ouviu falar. Mas poucos perfis são mais afetados pelos ditames dos grandes estúdios norte-americanos do que as mulheres acima dos 50 anos – independentes da cor, credo e origem. Todas, com raras exceções – sim, Meryl Streep, estamos falando de você – acabam inevitavelmente relegadas a papeis coadjuvantes de mães, vizinhas, colegas de trabalho ou alguma figura de respeito (juízas e médicas são as mais recorrentes) que surgem em algum momento pontual da trama, para não mais dar as caras depois. Somente por isso, já seria motivo suficiente para que A Intrometida despertasse a curiosidade dos cinéfilos mais atentos. Porém, o prazer de nos depararmos com uma personagem tão viva e ativa quanto a vivida por Susan Sarandon, aqui entregando o seu melhor talvez desde... Os Últimos Passos de um Homem (1995), pelo qual ganhou seu Oscar de Melhor Atriz, há mais de vinte anos, torna o programa não só raro, como de fato imperdível.

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Outra observação que se faz pertinente diz respeito ao título. A Intrometida – que é mais ou menos uma tradução literal do original The Meddler – nos remete quase que de imediato a uma pessoa inconveniente, inoportuna e sem noção. Acima de tudo, tal denominação só é possível quando oriunda de um olhar externo – ninguém nesta condição assim se considera, somente os outros é que podem considerá-lo assim. Isso daria a entender, ainda mais pelo pôster de divulgação – que coloca Susan ao lado da atriz Rose Byrne, que interpreta sua filha na trama – e pelo trailer um tanto equivocado, que o ponto de vista do enredo seria o da personagem mais jovem, enquanto que a outra seria apenas a idosa cuja presença incômoda e inesperada geraria “muitas confusões” (sim, isso parece ser tudo que os marqueteiros de hoje em dia conseguem elaborar). Pois bem, que fique claro que o filme de Lorene Scafaria não é nada disso – ou ainda, é muito mais, e melhor, do que essa vã promessa anunciada.

Pra começar, a verdadeira protagonista é Marnie, uma senhora há um par de anos viúva, que está aprendendo a refazer sua vida. Para tanto, se muda para Los Angeles, com a intenção de ir morar perto da filha única, uma roteirista de televisão. A garota, no entanto, está deprimida após ter sido abandonada pelo namorado, um ator em ascensão. Em crise criativa, tudo que quer é ficar sozinha e se concentrar para, quem sabe, produzir alguma coisa. Mas a mãe, que agora está mais próxima do que nunca, também tem suas carências. Precisa conversar, contar novidades, se envolver com os problemas dos outros, cuidar de alguém. Porém, como a jovem parece não estar disponível para esse tipo de interação mais ativa, aceita uma oportunidade que lhe é oferecida de emprego em Nova York, deixando toda a família que lhe resta para atrás. E assim, mais sozinha do que nunca, Marnie terá que descobrir como levar um dia após o outro com seus próprios passos.

E entre o atendente da loja Apple que lhe ajuda como usar seu iPhone ou iPad – a quem ela se oferece para dar caronas até às aulas noturnas, após incentivá-lo a retomar os estudos – e a decisão de bancar o casamento da amiga lésbica da filha, Marnie também encontrará espaço para aquecer um pouco o coração – Mark (Michael McKean) até tenta, mas será Zipper (J.K. Simmons) que conseguirá avançar um pouco mais nessa área – e até mesmo para tomar certas decisões que não podem mais ser adiadas – e que ninguém pode fazer por ela. O melhor, no entanto, é que nada soa gratuito. Tanto o rapaz carente quanto a noiva praticamente “adotada” possuem motivações suficientes para se envolverem com ela. Da mesma forma, Zipper é um personagem completo, com passado pendente e um futuro a ser desenvolvido. São figuras que, mesmo em presenças menores, não deixam de ser reais, tornando suas ligações com – e as próprias razões de – Marnie ainda mais vívidas e pertinentes.

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Se Susan Sarandon é a atriz perfeita para este papel, há também que se reconhecer o talento da diretora e roteirista Scafaria. Após o irregular Procura-se um amigo para o fim do mundo (2012) – ela também foi atriz no intrigante, porém inédito no Brasil, Coherence (2013) – Lorene revela uma sensibilidade tal ao tratar de suas criações que é impossível não se interessar por eles com a mesma forma e cuidado que ela demonstra com eles. Serão os pequenos gestos, os olhares perdidos, as frases não ditas, um carinho gratuito que fará a diferença. Marnie tem um mundo ao seu alcance, mas antes de tomá-lo para si precisa, enfim, se encontrar, pois está há muito tempo perdida, sem rumo, nem destino. Mas não há pressa para isso: ninguém, além dela, pode lhe fazer tal exigência. E se as interações com a filha seguirão num crescente – Byrne, ainda que em participação reduzida, segue revelando uma estimulante competência – será no conjunto que o longa revelará seu verdadeiro potencial. Não apenas uma oportunidade muito bem aproveitada, mas um belo exemplo de vida, em ambos os lados da tela.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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