Crítica


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Sinopse

Uma antiga estrela do cinema, um ator preso a uma cadeira de rodas, um roteirista amargurado e um diretor peculiar fazem de tudo para preservar o universo lúdico que criaram dentro de uma mansão. Quando dois jovens chegam ao local e ameaçam botar tudo a perder, eles precisam tomar atitudes drásticas.

Crítica

Mara Ordaz (Graciela Borges) é uma espécie de Norma Desmond portenha. A alusão à icônica protagonista de Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses (1950) se dá também porque, assim como Billy Wilder no filme estadunidense, em A Grande Dama do Cinema, refilmagem de Los Muchachos de Antes no Usaban Arsénico (1976), Juan José Campanella discute a implacabilidade do tempo com as estrelas que envelhecem como todos. A relação com o cinema é definidora e profunda nessa tragicomédia repleta de diálogos ácidos e reviravoltas bem ao gosto dos thrillers do período clássico de uma Hollywood mitificada. A diva passa seus dias de obsolescência numa propriedade afastada, acompanhada do marido, Pedro (Luis Brandoni), ressentido por não ter sido encarado como um ator talentoso; e da dupla impagável formada por Norberto (Oscar Martínez) e Martín (Marcos Mundstock), respectivamente os aposentados diretor e o roteirista dos sucessos de outrora do casal. Porém, para além das sugestões, o tecido narrativo se vale com gosto da metalinguagem.

O preâmbulo com Martín e Norberto caçando predadores que se alimentam da carne de outras espécies ganha completo sentido metafórico adiante, quando os quatro personagens principais são confrontados por Bárbara (Clara Lago) e Francisco (Nicolás Francella). Os dois aduladores exagerados tentam fisgar suas presas por meio de elogios, puxa-saquismo suficiente para reavivar o anseio por notoriedade de uma celebridade antes disputada. Aliás, o surgimento dessas figuras em cena, bem como todo arco no qual desempenham uma vilania deliciosamente caricatural, se dá pontualmente após o retirado cineasta constatar que na vida rotineira dos idosos antes celebrados como grandes tipos do cinema argentino falta conflito. Tão logo ele termine a frase destacando isso, o carro com os antagonistas surge no segundo plano, com direito ao subsequente close no rapaz cujos óculos escuros extravagantes espelham a casa, ou seja, o objeto da disputa ferrenha no porvir.

A Grande Dama do Cinema se desenvolve sobre as bases de gêneros distintos, drenando meticulosamente os seus cânones para substanciar uma trama sinuosa que passa pela exposição de femme fatales e de outros componentes caros ao cinema como meio de expressão. Valorizando o texto ágil e mordaz, com tiradas tão espirituosas quanto incisivas servindo para delinear os personagens, mais especificamente os arquétipos acessados para que haja manutenção entre as múltiplas camadas da diegese, o elenco é um verdadeiro show à parte. Graciela Borges parece divertir-se um bocado como a estrela presa a um passado de glórias, amargurada pelo esquecimento, atormentada por um presente ao qual não se sente pertencente. Luis Brandoni vive esse sujeito doce que compensa a falta de um talento excepcional com abnegações e sacrifícios em prol da musa inspiradora. Oscar Martínez encarna o ardiloso, a experiente “doninha” sempre dois passos à frente das caças. E Marcos Mundstock é o cirúrgico roteirista que coloca sua notável perspicácia a serviço do contra-ataque.

Em A Grande Dama do Cinema, Juan José Campanella exibe a segurança e a sensibilidade que lhe são peculiares, camuflando a complexidade formal com um fino e enganoso véu de simplicidade – novamente, como Billy Wilder o fazia brilhantemente. Sem hermetismos ou algo que o valha, ele cria um filme que recorre a vários expedientes meramente cinematográficos, transitando do melodrama ao thriller criminal, permeado por uma belíssima homenagem à magia inerente às figuras adoradas das telonas como deuses. A fim de consolidar caminhos cáusticos e ternos, estabelece parâmetros simbólicos partindo de convenções narrativas retrabalhadas com impressionante habilidade. O saudosismo deixa de ser uma âncora, adquirindo condição de combustível raro. Diante da necessidade de vencer as estratégias dos usurpadores encarnados com brios por Clara Lago e Nicolás Francella, os quatro veteranos remontam ao episódio que acarretou o ocaso forçado, atitude firme que faz este filme ter, inclusive, uma observação política consistente, a despeito de sua brevidade.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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