Crítica


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Sinopse

Imagens de integrantes do GRIN (Guarda Rural Indígena) desfilando de farda nos anos 1970 são encontradas em 2012. A partir disso, se investiga esse grupo miliciano indígena treinado pela ditadura brasileira.

Crítica

A Flecha e a Farda combina duas intenções reafirmadas constantemente. A primeira, compreender a narrativa por trás das filmagens encontradas no Museu do Índio em 2012, as da formatura de indígenas fardados como uma brigada especial (e de fato eram). A outra, efetivada timidamente, refletir sobre o papel da imagem à plena preservação da História. O cineasta Miguel Antunes Ramos propõe uma arqueologia a partir dos 22 minutos de registro bruto da festividade que aconteceu em Belo Horizonte, na qual estava sendo empossada a turma inaugural (e única) da GRIN (Guarda Rural Indígena), destacamento treinado pelo aparelho da ditadura civil-militar que governou o Brasil por 21 anos. Há muitas dúvidas devidamente expostas. Assim, não preexistem tantas certezas balizando esse processo de revelar o que a camada superficial da oficialidade deixou convenientemente soterrado. O encontro com os antigos integrantes do grupamento oferece a possibilidade de encaixar peças valiosas, a fim de construir um painel bem maior, eventualmente carregado de ambivalências.

Há sutilezas visíveis no documentário, mas que poderiam ganhar potência se melhor desdobradas. Oficialmente, a Guarda Rural Indígena foi criada para que os nativos tivessem capacidade militar de repelir invasores brancos e evitar evasões. Miguel Antunes Ramos somente sinaliza, assim passando batido, pela escrotidão retórica do texto publicado no Diário Oficial que pressupõe um caráter meliante dos índios ao citar que a GRIN também teria como missão reprimir os irmãos que desejassem ir ao domínio além de suas aldeias com o intuído de pilhar ou cometer delitos. Na medida em que os testemunhos vão se encaixando, percebe-se que, na verdade, essa turma agia mais como grupo paramilitar induzido a executar a lei dos brancos. Isso é exposto pelo conteúdo da fala de um ex-integrante remontando ao episódio em que foi mandado a executar “o certo” para beneficiar um pecuarista invasor. Os recém-fardados pelo governo não podiam agir de acordo com as regras sociais estabelecidas por suas tradições, pois eram submetidos aos códigos de quem os oprime.

Embora o acúmulo de entrevistas desempenhe um papel vital à reconstituição dessa página obscurecida da História, o enrijecido aspecto formal das mesmas gera uma reiteração contraproducente. Quanto ao tema, ele é para lá de relevante, além de recheado de potencialidades reflexivas, ora bem desenvolvidas, ora enfraquecidas pela rapidez com a qual são abordadas. No afã de combinar a ponderação histórica com uma equivalente imagético-cinematográfica, Miguel Antunes Ramos acaba ocasionalmente perdendo-se entre os focos, buscando intercambia-los, mas refreando algumas de suas capacidades de crescimento individual. No meio do raciocínio sobre a imprescindibilidade da imagem como perpetuadora dos acontecimentos, ele corta a outra entrevista, assim rompendo um fluxo fértil. Diante do vislumbre de indígenas exibindo em desfile o sujeito no pau-de-arara, instrumento de tortura bastante utilizado pela ditadura, a narração se limita a contextualizar a cena grotesca dentro da negativa do Estado, mas não permite ao aterrador reverberar por muito tempo.

A Flecha e a Farda possui várias possibilidades. Sua maior fraqueza, porém, é a autoimposta necessidade de convergi-las sem a modulação adequada à valorização das particularidades. Por exemplo, em dois momentos o presidente Jair Bolsonaro é mencionado por homens antes vestidos de repressão para supostamente salvaguardar suas terras. Isso faz parte da vontade, igualmente assumida pelas falas desalentadas quanto ao presente, de ressaltar o atual processo de desarticulação da FUNAI, a Fundação Nacional do índio, entidade criada para zelar pelas causa dos povos originários. Miguel Antunes Ramos opta por um recorte amplo, abraçando discussões de naturezas distintas, mas pouco aprofundando-se nelas. Assim, o filme se torna refém de uma insuspeita dispersão, embora dê conta de lançar luz sobre uma iniciativa deliberadamente apagada dos anais da nossa História. Não fossem aqueles 22 minutos descobertos em 2012, as vozes dos Xerentes, Krahôs e dos demais grupos indígenas cooptados na ocasião seriam fadadas ao esquecimento. Falta ao filme o investimento na compreensão densa. O deslumbramento da descoberta tira dele a ânsia por mergulhar fundo.

Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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