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Sinopse

Um dia, durante um encontro fortuito na estrada, o arquiteto Jack mata uma mulher. Este evento lhe provoca prazer, levando-o a cometer dezenas de outros assassinatos ao longo dos anos. Devido ao descaso das autoridades e à indiferença dos habitantes, o criminoso não encontra dificuldade em planejar seus crimes, executá-los e guardar os cadáveres num frigorífico. Tempos mais tarde, compartilha seus casos mais marcantes com o sábio Virgílio numa jornada rumo ao inferno.

Crítica

Assim como em seu díptico anterior, formado por Ninfomaníaca: Volume I (2013) e Ninfomaníaca: Volume II (2013), o cineasta Lars von Trier trata com ares de imprescindibilidade a palavra e uma consequente escuta. O protagonista igualmente relata sua história a um estranho. Neste caso, porém, temos uma relação mais nebulosa e simbólica, pois apenas ouvimos Jack (Matt Dillon) confessando – sem remorso ou arrependimento, é bom frisar – sua senda de assassinatos para o enigmático Virgílio (Bruno Ganz), adiante confirmado, literalmente, como o poeta romano clássico, assim que o mesmo diz-se autor da Eneida. Essa constatação, somada às frequentes menções a uma viagem que eles estão empreendendo, dão pistas sobre o dado sobrenatural de A Casa que Jack Construiu, novo longa-metragem de von Trier. Pode-se conjecturar que as reminiscências sirvam a algum propósito expurgatório, mas esse é um dado apenas periférico, pois o estudo é sobre a capacidade humana de promover atrocidades. Isso tudo com uma grande interpretação de Matt Dillon.

Jack diz que sua danação, ou algo que o valha num plano terreno, se deu, principalmente, em cinco episódios brutais. No primeiro deles, surge o sarcasmo peculiar de von Trier, com a personagem inconveniente interpretada por Uma Thurman insistindo em tipificar o protagonista como um serial killer nato, a começar pela suspeita van vermelha e os modos acabrunhados. É uma brincadeira com as aparências que, segundo os desdobramentos violentos, aqui não enganam. A brutal execução da mulher que desejava consertar seu carro parado na autoestrada é precedida por diversos planos-detalhe do instrumento mortal. Isso cria o suspense e acentua o impacto da ação abrupta que tira a vida da vítima inicial. Virgilio desempenha a ingrata função de voz da razão, contrabalançando moralmente a narrativa construída a partir do discurso de um narrador destituído de empatia, afeito a comparar atos vis e a concepção de obras de arte. O poeta denuncia o perfil das vítimas, mulheres imprudentes ou bastante burras, expondo, sobretudo, a visão deturpada que Jack tem delas.

Acusado muitas vezes de misoginia, de apresentar homens vilipendiando mulheres com um requinte quase fetichista, von Trier pode ser entendido, na condição de autor, como uma mescla de Jack e Virgílio. O primeiro dá vazão a suas posições controversas, claro, elevadas a uma potência descabida por conta da psicopatia evidente e minuciosamente delineada. O segundo representa a sensatez, tratando pontualmente de repreender traços repugnantes, vide certa admiração por genocidas como Adolf Hitler e a equivalência entre o processo vitivinícola baseado na putrefação das uvas e uma suposta elevação pela decomposição de cadáveres acumulados. Deslocados à esfera psicológica, um seria o ego e o outro o superego. Como de costume na obra do realizador, A Casa que Jack Construiu é um filme forte, calcado em discussões nebulosas, dono de cenas com alto potencial inflamável, como quando vemos o assassinato a sangue frio de duas crianças e, mais adiante, a mãe, atônica, sendo obrigada a “alimentar” os cadáveres, na reconstituição de um piquenique macabro e totalmente sádico.

Em A Casa que Jack Construiu, além das observações corajosas de uma mente doentia, há pitadas de autocitação, com imagens de longas pregressos de von Trier surgindo no momento em que Jack tergiversa, exatamente, sobre a responsabilidade das obras de arte. É um instante de direta provocação, em que o dinamarquês, de certa forma, se lança aos leões, utilizando a boca de um personagem anormal para proferir seus discursos. É um expediente arriscado, mas que denota a inclinação do cineasta por cutucar feridas, obviamente, não sem excentricidade e autoindulgência. Tendo em vista o fundamento no relato de uma psique perturbada, Virgílio, figura privilegiada que testemunha os fatos e os acessa novamente pela descrição do protagonista, funciona como uma espécie de filtro, assim assumindo a posição de senso crítico. É um mergulho vertiginoso, mas paulatino, numa mente nebulosa, oferecido por alguém disposto a flertar com o mau gosto, mas cuja ironia singular e a capacidade de tornar hipnótico até um trajeto potencialmente nauseante garantem outra viagem excepcional pela sordidez humana.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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