Sinopse
Crítica
Nora acorda todos os dias antes mesmo do sol nascer. Com uma ou outra coisa a arrumar pela casa, sai para pegar o ônibus antes mesmo desse fazer sua primeira viagem, pela qual espera, pacientemente, no ponto de parada. Atravessa a cidade até o aeroporto, onde integra a equipe de limpeza e, com seus colegas, forma uma sensível irmandade. De lá, no final do turno, vai atender uma senhora idosa, junto a qual atua como cuidadora, companheira e atendente, dando-lhe banho, preparando refeições e até mesmo ficando ao seu lado enquanto essa assiste à televisão. Já próximo do final dessa jornada diurna, se dirige de volta ao lar, recolhendo um neto pelo caminho, ao mesmo tempo em que mantém em suas preocupações o restante da família. É com esses, filhos e agregados, que se depara quando retorna, sinal de que suas atividades ainda estão longe de se darem por encerradas. Ela, como logo fica claro, é A Boa Mãe. Tanto no sentido do sacrifício diário, como também na maneira como é subjugada por esses, servindo de meio para vontades e caprichos, ainda que reconhecimento e reverência também existam. A diretora e roteirista Hafsia Herzi não tem pressa em oferecer contornos ao quadro que elabora. Sabe que esse é um cenário comum a muitos, nas mais diversas nacionalidades. Essa proximidade, porém, é tanto o acerto, como o descuido deste projeto.
Há muito a ser dito a respeito dessa mulher, no comando de uma família na qual elas são a força e a resistência, enquanto que aos homens cabem papeis distantes do imaginário popular, mas corriqueiros nessa faixa da população. Quando eles abandonam, são as companheiras que seguram as pontas, mantendo os demais em seus cursos – ou no mais próximo possível do que se imagina desses caminhos. Ninguém fala do pai, ou do marido. É Nora que mantém sob suas asas os três filhos: o mais velho está preso, deixando esposa e um garoto aos cuidados dela; a do meio, também mãe de uma criança; e o caçula, que afirma sair todos os dias para estudar, apesar de nem todos acreditarem nesse comportamento. Moram juntos no mesmo apartamento minúsculo, num condomínio habitacional na periferia de Paris. Quando saiu do seu país de origem, acreditava ir em busca de uma vida melhor. Não é bem diante desse cenário que precisa lidar cotidianamente. Mas isso também não é motivo para esmorecer. Tanto que os sonhos seguem vivos, mesmo que levem anos – ou mesmo décadas – para serem realizados.
Curioso perceber como a tradução em português do título elimina uma das possíveis interpretações do batismo. Bonne Mère é, sim, A Boa Mãe, na compreensão literal, mas no francês original “bonne” pode também ser entendido, entre seus tantos significados, como “criada, empregada doméstica”. Ou seja, a que cuida, a que serve aos demais. Basicamente, o que Nora é para seus filhos e familiares. Mas não se está aqui diante de uma história de desgraças, de uma sofredora injustiçada que é explorada por aqueles que deveriam lhe dar conforto e carinho. As coisas apenas são como se apresentam, por mais que queiram transformá-las. O filho preguiçoso se acha malandro, e pensa apenas em conquistas e videogames. A garota toma quatro banhos por dia, mas não ajuda a pagar as contas. Aquele que deveria ser responsável, agora se encontra atrás das grades, sendo motivo constante de preocupação, por mais que acredite que a culpa é dos outros, é da sociedade, “é da França”, e nunca de si mesmo. É muito com o que lidar para apenas uma pessoa. Mas não é assim com muitas famílias, que enfrentam o mesmo dilema dia após dia?
Justamente pelo tanto que acumula em sua trajetória particular, Hafsia Herzi, ela própria uma descendente de emigrantes franco-africanos (o pai é da Tunísia e a mãe da Argélia), se revela próxima demais do tema que escolheu abordar nesse que é um dos seus primeiros trabalhos como realizadora. Atriz premiada por O Segredo do Grão (2007) e presente nos elencos de obras recentes como Persona non Grata (2019) e Os Segredos de Madame Claude (2021), ela se revela particularmente discreta por trás das câmeras, porém um tanto indecisa sobre o que privilegiar dentro do conjunto construído. As impressões e sentimentos transmitidos por essa figura materna batalhadora e inconformada com os destinos dos seus seria, por si só, fortes o bastante para dominar a ação. Ainda assim, há um desenrolar desnecessário da filha se envolvendo no mundo da prostituição e nos meandros jurídicos envolvendo a futura soltura do primogênito, ao mesmo tempo em que o mais novo aparece como não mais do que uma figura anedótica, nunca aprofundada e nem mesmo trabalhada com o mesmo rigor dos irmãos.
No entanto, tal observação, por mais válida que seja, não é definidora do valor desta obra. A Boa Mãe é mais do que a soma individual de suas partes, principalmente pela marca deixada por sua protagonista e pela mão segura e carinhosa com a qual a realizadora conduz sua história e se apropria de seus personagens. Não mais a ‘mãe coragem’ de Brecht, pois tem noção de seu valor e sabe o momento de se colocar no devido lugar, sem se rebaixar diante de demandas exageradas ou vazias, ainda assim continua capaz de mover mundos e fundos quando a necessidade confirma sua urgência. Ao afirmar “já esperei quinze anos, posso aguardar um pouco mais”, é sabido que não está se menosprezando, mas, sim, entendendo a realidade que, de uma forma de outra, também faz parte. É parte de si, e pela qual irá lutar e defender até o fim. São escolhas difíceis, muitas vezes sem final feliz, mas essa é uma corrida não de retorno imediato, pois se ganha pela resistência. Algo renovado todas as manhãs, ainda que as noites se pareçam cada vez mais curtas.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Robledo Milani | 7 |
Alysson Oliveira | 8 |
Chico Fireman | 6 |
MÉDIA | 7 |
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