Crítica
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Sinopse
Presa na cidade sitiada de Mariupol, na Ucrânia, após a invasão russa, uma equipe de jornalistas está decidida a continuar o trabalho de documentação das atrocidades do conflito.
Crítica
Como se deve filmar os horrores de uma guerra? A partir de que ponto o registro pode se tornar antiético por incorrer no sensacionalismo ou na exploração da miséria e do sofrimento? Essa pergunta ampla e provavelmente sem respostas totalmente satisfatórias precisa ser reiterada a cada frame de 20 Dias em Mariupol. O longa-metragem documental se passa durante os 20 dias da permanência do fotojornalista (e diretor) Mstyslav Chernov numa das cidades ucranianas mais afetadas pelo avanço das tropas da Rússia no conflito que segue em curso enquanto este texto é escrito. Para começo de conversa, é bom assinalar: as imagens que compõe o filme não foram feitas inicialmente com uma intenção cinematográfica, pois o diretor era correspondente jornalístico da agência internacional de notícias The Associated Press (AP). Assim sendo, seus registros foram pensados com o intuito de denunciar as barbáries da invasão brutal cujos alvos não eram somente prédios militares, como anunciava o governo russo. Mstyslav circula por áreas residenciais populosas e duramente afetadas por bombardeios e transita por hospitais operando em condições insalubres para lidar com feridos à medida que a cidade permanece sitiada. Ele busca a captura dessa realidade que o governo russo teima em chamar de encenação. Então, a vontade de ser arauto da verdade é bem-vinda, mas os procedimentos são muito questionáveis.
As imagens de 20 Dias em Mariupol são frequentemente sensacionalistas. Mstyslav Chernov não demonstra respeito pela privacidade das vítimas ensanguentadas e das pessoas claramente desnorteadas pelo sofrimento extremo naquele cenário de guerra. Narrado em primeira pessoa, o documentário contém um momento de autodefesa dessa forma de escancarar os horrores do conflito: “as imagens precisam ser chocantes para traduzir o horror com fidelidade”, diz o realizador lá pelas tantas. Ainda sobre a construção narrativa, é bom ponderarmos que toda a narração foi construída a posteriori, ou seja, com o realizador plenamente consciente do impacto daquelas imagens anteriormente apresentadas na imprensa internacional como veículo de alerta. Mas, voltando à percepção do sensacionalismo camuflado de gesto empático, há um momento (entre tantos) que coloca por terra a defesa da necessidade de expor tão insistentemente as marcas da guerra para considerá-la abjeta. Mstyslav Chernov flagra a chegada da ambulância com uma criança tendo sucessivas paradas cardíacas. Em vez de ater à dureza natural desse momento, ele faz questão de acompanhar a subida da vítima ao centro cirúrgico, se credenciar como imprensa para registrar de modo intrometido o trabalho da exausta equipe médica que tenta reanimar o menino e ainda filmar o desespero dos pais com a notícia da morte.
Mstyslav Chernov busca construir um retrato cru e doloroso da guerra, mas acaba explorando a miséria alheia enquanto dissimula a morbidez com seus relatos angustiados em primeira pessoa. Enquanto realizador cinematográfico, ele age como se a câmera invasiva fosse moralmente autorizada pela missão de mostrar a dureza da verdade. 20 Dias em Mariupol é recheado de imagens perturbadoras de civis uivando de dor, cadáveres empilhados em porões de hospitais, equipes médicas emocionalmente esgotadas caindo aos prantos diante de consecutivas mortes, moradores desorientados enquanto a Rússia explode casas, centros de socorro e outros alvos civis. Falta sensibilidade à direção para filtrar os elementos que podem “espetacularizar” essas dores, uma vez que a intenção anunciada é a de se compadecer as vítimas, não de espremer a sua angústia para provar uma tese: a Rússia está errada. Outro indício da falta de tato do fotojornalista que reflete posteriormente sobre a experiência devastadora também a ele é a pergunta feita ao voluntário encarregado de encher covas coletivas com cadáveres. Mstyslav questiona: “como você está se sentindo”, evidentemente recebendo um olhar um tanto irritado, outro tanto incrédulo do sujeito que certamente não pode estar menos do que devastado e emocionalmente despedaçado por conta da tarefa que lhe cabe. Outro sintoma da exploração.
20 Dias em Mariupol exibe uma enorme contradição interna. A narração fala de desespero, da necessidade de flagrar as atrocidades para dar ao mundo a dimensão da perversidade russa durante os avanços em Mariupol. E é absolutamente louvável o esforço dos jornalistas que comem o pão amassado pelo diabo, correndo sério risco de morte, para informar ao mundo as verdades que os poderosos consideram inconvenientes às suas causas torpes. Porém, Mstyslav Chernov explora, consciente ou inconscientemente, a miséria decorrente do conflito, sempre em busca de imagens aterradoras reiteradas pelo dispositivo até perderem o sentido atroz pela falta de sensibilidade desse olhar denunciante. Fica a sensação de que o fotojornalista/realizador enxerga a calamidade como um espetáculo doloroso que deve ser examinado sem qualquer filtro ético, como se fosse legítimo invadir a privacidade de mortos e feridos para fazer jus a eles. Nesse percurso, Mstyslav viola intimidades, trata cadáveres não como indivíduos que perderam a vida, mas como efeitos colaterais da guerra que ele nem se preocupa em contextualizar. Outro sintoma do sensacionalismo é a quantidade de planos de poças de sangue encarregados de arrematar o testemunho da agonia da morte de alguém. Não se trata aqui de defender pudores ou reivindicar uma maquiagem do real, mas de levar em conta a ética na produção de imagens.
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Qual filme equivalente vc acha que tratou com dignidade as pessoas que passaram por esse tipo de conflito? Seria interessante para comparação. Obrigada!