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Sinopse

Durante a Primeira Guerra Mundial, dois jovens soldados britânicos recebem uma missão praticamente impossível. Em uma luta contra o tempo, precisam atravessar o território inimigo e entregar uma mensagem para impedir um ataque que pode matar milhares de soldados. E entre as possíveis vítimas está o irmão de um dos dois.

Crítica

Dois jovens soldados descansam tranquilamente. O enquadramento neles é fechado. O que sobrevém ao chamado do encarregado do batalhão, com a câmera acompanhando frontalmente o deslocamento de ambos em direção a uma missão tão difícil quanto fundamental, é um forte indício do primor não apenas técnico, mas também da encenação orquestrada por Sam Mendes. Gradativamente, a guerra vai preenchendo o quadro, aumentando a dramaticidade desses passos por entre corpos cansados e/ou feridos e toda sorte de artefatos que denotam a vigília do exército inglês na Primeira Guerra Mundial. E desde esse começo acachapante o trabalho do diretor de fotografia Roger Deakins o coloca numa posição de tal forma imprescindível que se poderia aponta-lo como coautor do todo. O falseamento do plano-sequência único – na realidade o filme é composto de várias tomadas extensas, justapostas ao ponto de tornar suas costuras praticamente invisíveis – não serve a intentos meramente estéticos ou exibicionistas. Ela é vital para aderirmos àquelas situações.

Sam Mendes não sinaliza o tempo como único elemento conferindo urgência ao longa-metragem. Claro que o prazo curto a ser cumprido faz da jornada ainda mais complexa e pedregosa, porém a tensão maior é concentrada nos efeitos hostis da própria guerra. Não à toa, em vários instantes, o realizador faz questão de focalizar os pés enlameados dos homens cuja função é atravessar o campo inimigo para, vencendo as probabilidades contrárias, avisar um grupamento da emboscada que pode vitima-la integralmente. Eles lutam incessantemente contra o terreno esburacado pelas bombas, repleto de corpos putrefatos, arames farpados e armadilhas variadas, ou seja, patinam nas decorrências do embate entre britânicos e alemães. O design de produção a cargo de Dennis Gassner é de uma excepcionalidade admirável. A acuradíssima direção de arte se encarrega de conferir verossimilhança a esses obstáculos que se colocam diante dos cabos e de seus aliados.

Dos dois, Blake (Dean-Charles Chapman) é o motivado por atos heroicos, o que intenta obter medalhas para orgulhar a família. Já seu colega, Schofield (George MacKay), é um sujeito essencialmente pragmático, descrente quanto à primazia da coragem cega no turbulento campo de batalha. O companheirismo surge equilibrado entre a intensidade e a sobriedade no bailado hipnótico que a câmera de Roger Deakins ambienta nas paisagens ora devastadas, ora verdejantes como rápidas ofertas de contrapontos. A partir de determinado estágio em diante, a missão dos combatentes ganha novas conotações. Por força de uma tragédia, não é somente necessário garantir a salvaguarda de quase 2000 incautos que acreditam piamente na inteligência do plano, pois a isso se acresce levar más notícias a um ente querido. Essa laceração acaba aumentado a natureza pesarosa da jornada insalubre e inglória. Em 1917 a guerra é intermitentemente vista como um inferno.

Alguns instantes enfraquecem 1917, sobretudo as coincidências ligeiramente forçadas, como o avião caindo exatamente no quadrante dos incumbidos e a ajuda pontual a uma criança que precisa de leite para sobreviver à constância da barbárie nas cercanias. Todavia, esses pequenos escorregões não chegam a arranhar a experiência potente de acompanhar os jovens abraçando veementemente uma tarefa praticamente impossível, protagonizando um périplo orientado por uma leitura absolutamente amarga das torpes engrenagens dos conflitos bélicos. Vemos oficiais caindo copiosamente no choro, sujeitos cegados momentaneamente pela adrenalina da batalha e as ações sustentadas a fim de valorizar a sobrevivência. Sam Mendes não se detém na relação entre comandantes relativamente protegidos pela estrutura militar e soldados vulneráveis em campo aberto por conta da hierarquia. Porém, nos é facultado observar as consequências disso nas entrelinhas.

Noutra vez que incursionou pela guerra, em Soldado Anônimo (2005), Sam Mendes buscou referências estilísticas em Nascido Para Matar (1987), assim estabelecendo uma ponte entre as guerras do Golfo e do Vietnã. Com 1917, ele novamente parece reverenciar seu colega e compatriota Stanley Kubrick, mas desta vez fazendo alusão à Glória Feita de Sangue (1957), então, reportando-se igualmente à Primeira Guerra Mundial, período pouco abordado pelo cinema. Do clássico dos anos 50 do século passado, seu novo filme resgata a expressividade dos trajetos dramáticos pelas trincheiras, a sinuosidade desses corredores exíguos que comportam boa parte da calamidade abatida sobre homens comuns instados a defender posturas geopolíticas com suas próprias vidas. Em meio a esse verdadeiro tour de force, Mendes sabe exatamente quando migrar do íntimo ao grandiloquente, com a maestria que lhe é contumaz, propondo bem mais que um mero espetáculo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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