Vivemos tempos difíceis, política e socialmente falando. A gente sabe que o Brasil não é uma exceção, pois, infelizmente, polarizações, violências de toda sorte e falta de diálogo são como uma pandemia espalhada nos quatro cantos do globo, potencializada pelas redes sociais. Hoje todo mundo pode opinar acerca de tudo (o que é ótimo), mas nem sempre o faz com propriedade, serenidade e abertura a outros olhares (o que é péssimo). As manifestações de 2013, episódio já histórico de revolta popular contra os desmandos da classe política, levaram o então designer carioca Luciano Cunha a tirar da gaveta a HQ protagonizada por um anti-herói que, justamente, farto da corrupção, resolve pegar em armas e assassinar homens públicos que se corrompem, especialmente vereadores, deputados, prefeitos, governadores, etc. Claro, as reações foram as mais diversas, afinal de contas, no clima convulsionado em que vivemos, será possível dar espaço a um cidadão que resolve fazer justiça com as próprias mãos?
Fato é que, primeiro publicado no Facebook, e, mais tarde, em edições impressas, O Doutrinador encontrou o seu público, tratando de temas urgentes e reais com uma pegada de ação e almejando o entretenimento. O sucesso chamou a atenção e agora é iminente a estreia da versão cinematográfica e de uma série de TV, produtos baseados nos personagens de Luciano. O Papo de Cinema foi convidado para ir a São Paulo conferir de perto alguns momentos das produções – que correm paralelamente –, bem como conversar com boa parte dos responsáveis por essas transposições que se inserem num filão explorado de maneira bissexta pelo cinema brasileiro. Sim, pois, estamos falando de adaptações de quadrinhos, um longa e uma série aberta e orgulhosamente de ação, ou seja, exemplares de gênero. Fomos levados a uma belíssima casa no bairro de Santo Amaro. Nem parecíamos estar na capital paulista, porque afastados do trânsito e praticamente isolados numa rua de pouco movimento e fartamente arborizada.
A programação à imprensa previa uma coletiva, na qual estariam presentes os principais nomes da produção, seguida de uma visita ao set para o testemunho de ensaios e de uma filmagem. Enquanto alguns colegas entrevistavam o protagonista, Kiko Pissolato, circulamos pelo local e constatamos a descontração da equipe. A casa onde inicialmente estávamos, embora tão imponente quanto qualquer cenário de cinema possa se prestar a ser, era a base da produção, na qual ficam figurinos e onde equipe faz as refeições. Enfim, o QG. E a grandiosidade desse local já nos deu uma boa pista do tamanho do aparato e, por conseguinte, do dinheiro investido para que a empreitada possivelmente dê certo. Conversamos informalmente com o diretor Gustavo Bonafé, que aguardava a coletiva começar. Ele nos disse que, ao todo, série de TV e filme, demandarão 75 diárias, a maior parte delas noturna, já que o Doutrinador age nas sombras, protegido da luz para dar cabo de suas missões.
Perguntado sobre as cenas de violência, Gustavo disse não haver alívio, que existem momentos explícitos, mas também soluções cinematográficas inteligentes que evitam a gratuidade. Fumando ao conversar conosco, ele demonstrou muita empolgação com O Doutrinador, falando ainda acerca da importância de fazer filmes de gênero no Brasil. Questionado quanto ao conteúdo potencialmente inflamável do personagem, vide sua forma de agir, Gustavo disse estar pronto para “apanhar dos dois lados”, referindo-se às ideologias políticas de esquerda e de direita, mas que também está muito certo de comandar algo voltado ao entretenimento, essencialmente ao entretenimento. Aliás, esse é um discurso comum entre os membros da equipe, de que tanto o filme quanto a série de televisão se prestam a entreter, embora acessem dados de realidade. Logo após esse nosso papo, fomos chamados ao início da entrevista coletiva que contou, na ordem de disposição da mesa, com a produtora executiva Renata Rezende, o diretor Gustavo Bonafé, o ator Kiko Pissolato, o quadrinista Luciano Cunha, o criador e roteirista Gabriel Weiner e o codiretor Fabio Mendonça. Cerca de 20 profissionais da imprensa estavam presentes.
“A base da história é a mesma, mas estamos fazendo dois produtos diferentes”, começou dizendo a produtora Renata Rezende, referindo-se à série de TV e ao filme. Ela ressaltou o desafio de realizar simultaneamente os dois produtos, contando com num total de 14 semanas de filmagem. Renata falou do prazer que está sendo fazer O Doutrinador, algo corroborado pelos demais integrantes da mesa. Gustavo Bonafé prosseguiu essa fase de apresentações, dizendo o quanto está contente por fazer esse tipo de filme no Brasil. Ainda esclareceu que ele e Fábio Mendonça não dirigem juntos, mas sempre trocando muitas informações acerca dos segmentos que cada um comanda, exceção feita a uma cena de ação mais complexa, à feitura da qual decidiram compartilhar a função. “Para mim é um atrativo gigante fazer adaptação de quadrinho. Pra quem dirige é um prato cheio”, seguiu a conversa o codiretor Fábio Mendonça, que na sua fala inicial mencionou a busca da linguagem de transposição.
Gabriel Weiner comentou que Luciano, o autor da HQ, “conseguiu sintetizar um espírito do nosso tempo”, demonstrando entusiasmo por participar do projeto. Logo depois, a palavra foi para Kiko Pissolato que já começou descontraindo, mencionando a cena do Doutrinador fazendo flexão com dois dedos, presente na HQ, e que obviamente o obrigou a um desafio físico grande, provocando risos nos jornalistas. “É um prazer absoluto fazer esse trabalho, é diversão pura. Volto a ser criança cada vez que entro no set, é a mesma sensação de quando brinco com meu filho e ele coloca a máscara do Wolverine e do Homem-Aranha. É um sonho poder fazer filme de ação no Brasil”, disse ele. Kiko comentou que um pouco antes do teste, se recuperava de um acidente e sua preocupação era voltar a andar. E que logo depois estava todo empolgado com as cenas de luta, querendo dispensar os dublês: “Como é que você bota a roupa do Batman e não vai sair pulando por aí? Não vou deixar o dublê fazer. Quero brincar (risos)”.
O último a apresentar-se foi Luciano Cunha, que começou falando “nem nos meus sonhos mais otimistas imaginei que um quadrinho que fiz para externar minha revolta com a nossa classe política ia tomar esse tamanho, ia chegar onde chegou. Acho que vocês nem podem imaginar a minha alegria ao ver o que está acontecendo. A primeira vez que fui ao set não resisti e comecei a chorar. Vi aquela parafernália toda, aquela equipe e me veio na hora à cabeça todo o trabalho que me deu fazer esse quadrinho, tudo que passei para fazer, e não foi fácil. É literalmente um sonho se tornando realidade”, completou.
TRANSPOSIÇÃO DOS QUADRINHOS
Fábio Mendonça disse que eles não estão usando os quadrinhos como storyboard e que as tramas do filme e da série são inéditas, não necessariamente a de alguma das edições das HQs – já há três. “Não estamos filmando o quadrinho”, sentenciou. Gustavo falou que a espinha dorsal do filme e da série é a mesma, sendo o filme muito mais a história de Miguel, o protagonista, e a série dando espaço ao desenvolvimento maior dos personagens coadjuvantes. A trama de ambos os formatos é praticamente a mesma, num expediente já relativamente comum no Brasil, especialmente em produções cinematográficas Globo Filmes que, uma vez estendidas, viram séries de TV, mas incomum quando aplicada ao gênero ação.
PRODUÇÃO
Segundo Renata, tudo se materializou antes à série de TV e depois surgiu a ideia da produção paralela do longa-metragem. “Fizemos opção por profissionais brasileiros e estamos acreditando muito na construção dessa indústria. O cinema nacional vem crescendo muitíssimo nos últimos anos e acredito que nosso projeto tem uma coisa bem legal de fomentar não apenas as profissões mais padrão, mas uma turma com a qual não estamos acostumados a trabalhar, como dublês, instrutores de tiro, coreógrafos e certa turma da maquiagem, que em outras produções acabam fazendo participações. Aqui eles estão integralmente presentes” disse a produtora. Gabriel deu dados da engenharia ao dizer que foi um projeto relativamente fácil de vender, pois tudo estava já previamente delineado nos quadrinhos. Ele também revelou que está sendo desenvolvido um game de O Doutrinador e que há negociações de licenciamento para diversos produtos.
CONTROVÉRSIAS
Kiko chamou Miguel de herói, mas foi logo corrigido pela produtora Renata, que fez questão de pontuar “anti-herói”. Ele ressaltou o caráter de entretenimento e a perspectiva de catarse, especialmente no momento em que a classe política anda tão desacreditada no país. “É um filme de herói…de anti-herói, que não é um caminho possível, a não ser nas telas. Assim como não é plausível colocar uma cueca vermelha por cima da calça e pular de um prédio. E, tem mais, o filme não toma partido. Não estamos fazendo um filme político, embora num contexto político”, completou o intérprete de Miguel. Renata veio em defesa desse caráter escapista dizendo que as pessoas vão perder o receio de algo alinhado ideologicamente a A ou a B quando o filme estrear. Segundo Luciano, não há como ligar a trama com algum partido ou bandeira, por exemplo. Ele reconhece que o material é naturalmente polêmico, e que sabia disso quando criou o personagem. Tanto que das 14 editoras para as quais enviou o quadrinho, antes de publicar no Facebook inicialmente, 11 responderam dizendo que, embora o material tivesse qualidade, elas foram desaconselhadas a publicá-lo por seus respectivos advogados. “A gente está realizado um desejo que está aí, nomeado na internet. Quem nunca falou ‘ah, mata todo mundo’?”, completou Gustavo.
INSPIRAÇÕES PARA A CONCEPÇÃO DE O DOUTRINADOR
“Cresci vendo Charles Bronson, Steven Seagal, Chuck Norris, Jean-Claude Van Damme, Arnold Schwarzenegger, Dolph Lundgren, esses caras. Gosto do universo da ação. Gosto da porrada (risos), cresci fazendo lutas. Então todos esses que citei estão um pouquinho na minha concepção do personagem” , falou Kiko, bastante empolgado ao relembrar, inclusive, da sua primeira sessão de cinema: Superman: O Filme (1978), fazendo um link com esse universo fantasioso que, então, habita seu imaginário desde muito cedo. Ele também disse que o personagem John Wick, interpretado por Keanu Reeves em De Volta ao Jogo (2014) e John Wick: Um Novo Dia Para Matar (2017), O Justiceiro (2017-), série da Marvel, e o Batman da trilogia de Christopher Nolan foram influências diretas.
PARALELOS COM A REALIDADE
A equipe, quando questionada sobre a possibilidade de reconhecer figuras reais nas alegorias do filme, foi categórica em manifestar que isso não será possível. Eles frisaram que os personagens, na verdade, especialmente os políticos, são somatórios de vários. “Se você queria matar um político, ele vai ‘estar lá’ (no/na filme/série)”, disse brincando o cineasta Gustavo Bonafé. Luciano falou que no primeiro volume dos quadrinhos dá para identificar os “baluartes” da corrupção no Brasil, mas que no filme/série isso não acontece. Filme e série se passam em uma cidade fictícia, com instituições fictícias, justamente para fugir a esses paralelos.
HERÓI OU ANTI-HERÓI?
Gustavo fez questão de afirmar que no filme fica muito claro que o Doutrinador é um anti-herói. “Quem leu os quadrinhos sabe que o protagonista é perseguido, ele não é tido como herói também no quadrinho. No filme isso fica mais claro ainda. Ele é tido como errado, pois faz algo ilegal. Entre aspas, ele é um criminoso comum”, completou Luciano Cunha. A equipe quase em uníssono rechaçou a possibilidade de alguém, inspirado no personagem, sair matando políticos. “É a mesma possibilidade de qualquer pessoa vestir uma cueca por cima da calça e se atirar de um prédio. A proporção é a mesma”, completou Kiko.
Nosso agradecimento especial à Agência Febre, à Paris Entretenimento e à Downtown Filmes, que nos convidaram para visitar o set de O Doutrinador, em São Paulo.
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