Estamos no final do mês de junho, em uma noite – muito – fria na capital gaúcha. O inverno começou não faz nem uma semana, mas as temperaturas por aqui estão mais baixas do que o normal, o que tem deixado todo mundo preparado para o pior. Mais ou menos como o repórter aqui se sentiu ao ser convidado para uma visita ao set de Disforia, longa de estreia de Lucas Cassales no formato. Após um período de chuvas, o sol finalmente saiu, deixando muita gente animada. Mas o pessoal da produção foi enfático: o melhor horário para poder conversar com o diretor e com o elenco seria durante a janta, e como as filmagens estavam previstas para entrar noite adentro, também poderíamos acompanhar a preparação da sequência seguinte a ser filmada. Então, bora colocar o casaco mais pesado!
O cenário não é estranho aos moradores de Porto Alegre: estamos em pleno Parque da Redenção, o mais tradicional dos gaúchos. Para sermos mais exatos, as cenas a serem filmadas seriam no Parquinho, um reduto para crianças e famílias, com todos aqueles brinquedos que animam os pequenos: autochoque, barco viking e, é claro… a roda-gigante! Exatamente onde irão se encontrar os protagonistas, vividos por Rafael Sieg e pela pequena Isabella Lima, que apesar de ter apenas 8 anos, não pode ser considerada uma novata. “Esse é o meu segundo filme. No ano passado participei de um curta, que ainda não foi lançado. E tenho sempre um responsável comigo, meu pai ou minha mãe”, afirma a menina, com bastante desenvoltura. Mas antes disso, é preciso um esclarecimento. Afinal, o que significa ‘disforia’, que dá título ao filme?
“O nome surgiu após a ideia do filme, na verdade. Conheço o Thiago Duarte, meu co-roteirista, há anos. Um dia decidimos jogar algumas ideias na mesa, e ele tinha essa história sobre, inicialmente, duas irmãs. Era uma trama mais marcada pelo gênero terror. Achei legal, até porque conversava bem com O Corpo (2015), o curta que estava trabalhando na época. Tinha essa coisa de provocar presença, alguma sensação estranha nas pessoas. Daí começamos a escrever em cima disso. O nome Disforia veio quando estávamos pesquisando, vi esse nome e gostei. Na real, passei por vários momentos em relação a ele. Chegou um ponto em que não queria mais usar, achava estranho, mas depois abracei. Disforia é uma mudança brusca de um sentimento, de um pico a outro. Uma variação anímica rápida, brusca”, declara Lucas, acrescentando que, durante esse processo, muito da história original foi alterado.
“Não é porque estou fazendo parte do filme, mas acho o Lucas um roteirista e um diretor incrível. Fiz O Corpo com ele, e quando li esse novo roteiro, já me apaixonei. Vi que era diferente da maioria das coisas que recebo para fazer, e que temos visto por aí. Acho que o Disforia tem essa pegada. É algo da forma dele escrever e pensar, que beira o terror. Suspense psicológico, talvez? Tem um lance sobrenatural. Tangencia, não se sabe se é na cabeça dos personagens ou se está acontecendo de fato”, complementa Janaína Kremer, que retoma a parceria com o diretor. E Sieg, o protagonista, concorda: “Tinha até uma previsão para termos começado antes as filmagens, mas por outros motivos tudo foi prorrogado e agora estamos aqui, firmes. Fiquei feliz de finalmente ter chegado nesse momento, pois às vezes os projetos vão se modificando, surgem coisas de agenda, e estou muito grato de estar fazendo algo do qual participo desde o começo”.
A TRAMA
São cinco personagens principais, em duas histórias que correm em paralelo. Numa, acompanhamos o drama de Paolo (Vinícius Ferreira), que, com a ajuda da mãe (Ida Celina), cria sozinho a filha (Isabella Lima). Só que a menina era gêmea, e onde está esse irmão é apenas um dos mistérios do enredo. Na outra ponta, nos deparamos com Dario (Rafael Sieg), que viveu um grande trauma há alguns anos, e hoje sua esposa, Silvia (Juliana Wolkmer), encontra-se internada. Ele era um psicólogo infantil que está há anos sem atender, mas é convencido a voltar à ativa quando conhece Sofia. “A culpa é minha, eu assumo. Sou a Tania. Ela é uma assistente social que tem uma relação muito próxima, de muito afeto, com o Dario. É ela que passa o caso da Sofia para ele, justamente o que detona o conflito da trama. Ela acha que ele está pronto, pensa que é o momento dele voltar a trabalhar com crianças. Esse caso chega primeiro nela, pois a menina se machucou, e ela sugere que o Dario assuma como psicólogo”, explica Janaína. Mas quem melhor do que o próprio para dar a sua versão?
“O Dario atende crianças. Ele acaba vivendo um trauma pessoal que é revelado ao longo do filme – tem que ter cuidado com os spoilers. Depois de um período afastado, é convidado a lidar com o caso dessa menina, a Sofia. Acho que tem duas coisas correndo em paralelo. Uma é esse desconforto, esse mistério que existe em torno dela, que vai se desenrolando ao mesmo tempo em que ele vai tendo acesso às próprias memórias e aprendendo como superar esses conflitos. São duas narrativas que vão se cruzando”, afirma Sieg. E ele era, de fato, o homem certo para isso. “O Rafa estava desde o início. Já no primeiro edital em que inscrevemos o filme, sabíamos que seria ele o protagonista. A gente teve algumas mudanças durante este caminho, alguns personagens até caíram no meio do processo, que foi muito longo. Mas ele é incrível, trouxe muita coisa para o filme, o que me deixou bastante tranquilo. Tem isso de estar aberto para aprender, para ver o que o set oferece. Claro, tem dias mais corridos, e outros de boa, então é possível todo mundo contribuir. E tem facilitado muito. Principalmente por estar fazendo este filme neste momento, em que me sinto mais aberto e disposto”, acrescenta Cassales.
Ao todo, se passaram quase cinco anos até chegar nesse momento das filmagens. Agora, uma equipe de mais de cinquenta pessoas está reunida durante vinte dias. Estão no dia 13 do cronograma inicial quando os encontramos. E quase tudo em Porto Alegre. “Teve um, dois dias em Eldorado, mas tudo próximo. O cronograma está indo bem, tudo dentro do esperado”, confirma o diretor. Rafael dá mais informações: “estamos filmando em Porto Alegre, e em nenhum momento se esconde isso. O que acho bacana é que estou vendo a cidade por outros pontos de vista, por outros ângulos. E posso dizer: tá bem bonito. A cidade pode estar meio sofrida, mas, expressivamente falando, encontramos coisas muito interessantes. É uma cidade que dialoga com o filme, não é só um cenário: é um personagem que vai afunilando esse cara. A gente transita entre o movimento e umas locações mais afastadas. E estes respiros, fora do centro, servem também para quando a gente retorna e percebe essa sensação de estrangulamento do personagem”.
CINEMA DE GÊNERO
Todos, atores e diretor, conversam com a reportagem sempre cuidando muito as palavras. Seja o cineasta, que está em seu primeiro longa, ou Janaína, que é a verdadeira cara do cinema gaúcho: “Eu e o Nelson Diniz (risos). Mas que bom ouvir isso. Até acho que não seja tanto, mas enfim”, comenta a atriz, que continua: “Comecei fazendo O Sanduíche (2000), do Jorge Furtado. Desde então, sigo trabalhando com o pessoal da Casa de Cinema. E fui acompanhando essa geração, que aos poucos foi dando espaço para gente como o Gustavo Spolidoro, o Fabiano de Souza, o Gilson Vargas. Essa galera que tem mais ou menos a minha idade, em torno dos 40 e poucos anos. E depois veio esses garotos, ou jovens adultos, como o Lucas, ou o Marcio Reolon e o Filipe Matzembacher. Vejo uma geração super competente, arrojada em termos de ideia, de formas de fazer, que vão se modificando e acompanhando outros tipos de movimento da arte”. Disforia, pelo que se percebe, é resultado dessa vontade de fazer algo diferente. Mas em que sentido?
Quem dá sua versão, agora, é a pequena Isabella: “A Sofia tem um irmão. Ela nasceu e o pai soube de uma coisa que não era natural, que ela e o Lúcio causavam uma sensação má nas pessoas. Quem ficasse próximo dos dois começava a se sentir doente, com tonturas, ficavam perturbados. As pessoas desmaiavam. Teve uma cena que fiz com o Dario, estávamos no banheiro, e quando eu olhava para o espelho, o Lúcio é que aparecia no meu corpo. Por causa dessa sensação, o Dario não aguenta, e acaba se ajoelhando e caindo. Por isso que os dois irmãos não podem ficar juntos”. Mas seria quase um poder sobrenatural? Ela continua: “É uma coisa que ela sabe que acontece, mas não consegue evitar. Por isso se sente mal, se sente culpada por tudo aquilo”.
“A menina, de certa forma, funciona como um disparador, pois o joga de novo naquele lugar de dor. E isso é interessante, pois é do ser humano e do estudo da psique essa vontade, quase sadomasoquista, de querer voltar para esses lugares. Poderia simplesmente fugir daquilo que causa desconforto, mas mesmo assim você insiste em cutucar a ferida. Isso é algo que gosto neste filme”, acrescenta Rafael Sieg. E Lucas continua: “A esposa do Dario está internada, e no início não entendemos muito bem o que aconteceu, e nem porque ela está ali, naquela situação, meio catatônica. É quando ele passa a atender essa criança, a Sofia, e aos poucos vai descobrir que tem alguma coisa estranha naquela família, com o pai e a avó da menina”.
A ESCOLHA DE SOFIA
Rafael Sieg e Janaína Kremer estiveram juntos em Ainda Orangotangos (2007), um dos marcos do cinema feito no Rio Grande do Sul no início desse novo século. Desde então, seguiram caminhos distintos – ele foi para o Rio de Janeiro, ela ficou em Porto Alegre – e agora se reencontram como dois amigos. Ou seria mais do que isso? “Pois é, é uma amizade colorida, mas sem nenhum comprometimento. É uma coisa que faz parte da vida deles”, Janaína adianta. E ele continua: “Tenho uma grande parceira no filme, que é a Janaína. É uma amiga do meu personagem e é quem encaminha esse caso para ele. No começo não queria voltar a atender crianças, mas é ela, como uma boa amiga, que chega e diz: ‘tá na hora de ir em direção dessa ferida, vai lá’. A gente tem esses encontros esporádicos, o que é muito bom para os dois”.
Se a relação deles é muito bem resolvida, obrigado, chegar até a Isabella Lima já não foi tão fácil. “Não lembro quantas meninas chegamos a entrevistar, mas foram bastante. Foi um dia inteiro de testes”, recorda Lucas. Mas o que ela tinha de especial para ser a escolhida, então? “Foi o olhar. Quando para – ela é muito agitada – e se concentra, tem algo especial. Quando mantém o foco, é incrível”, ele esclarece, passando a bola para a própria. “No começo, não sabia que seria um filme. Fui apenas fazer um teste, e lá tinham várias garotas como eu, todas se candidatando para o papel da Sofia. E o Lucas foi chamando duas de cada vez. Quando entrei na sala, fiz uma das cenas que me pediram, e pronto. Não teve nada de diferente. Dias depois, me ligaram e fiquei sabendo que havia sido escolhida. A sensação foi incrível”, recorda a jovem estrela, que afirma que quer seguir na carreira: “Sim, pretendo que esse filme faça muito sucesso e quero continuar com isso, com esse processo. Antes eu era só modelo, mas agora vou investir na carreira de atriz. Estou gostando bastante. Está sendo bem legal”, conclui, no alto dos seus oito anos de idade!
E se nem tudo é brincadeira, Rafael é quem mostra o lado mais sério da profissão: “Tenho um amigo psiquiatra com quem conversei bastante a respeito desse filme. Ele me ajudou a entender esses processos pós-traumáticos, o quanto isso pode ficar na cabeça de alguém, e que elementos ajudam a disparar, a reviver na essência aquele momento, que é o que acaba acontecendo – ainda que não seja sempre assim, mas é o caso desse personagem. A menina e os cenários por onde a gente transita terminam por disparar essas memórias traumáticas”.
RODA GIGANTE
Depois de conversar com os quatro ainda no restaurante, somos convidados a atravessar a rua e nos dirigir ao parque. Naquele horário – em torno das 21h – o lugar está vazio, e foi aberto apenas para a produção do Disforia. Com todo aquele frio, também, difícil imaginar alguém disposto a se aventurar em algum daqueles brinquedos. Mas o que, exatamente, eles pretendem filmar neste dia? “Esta cena se passa quase no final do filme. Já tivemos um momento com uma virada. Então esse é o respiro para irmos para a resolução. É uma cena noturna. Antes, filmamos os dois em uma pracinha, aqui ao lado, e agora vamos para a noite. Nossa ideia era fazer na hora mágica, mas seria muito difícil de controlar, até pela dificuldade de filmar no parque de diversões”, esclarece o diretor.
“Estou com o Dario no parque. A Sofia é muito tímida, não conhece ninguém. E ele é o psicólogo dela, é sempre muito legal. Nessa cena ele irá perguntar se ela já esteve alguma vez na roda gigante. Ela está comendo um algodão-doce, e disfarça, pois não quer contar que nunca esteve ali e está com muita vontade, mas com vergonha. Só que ele acaba percebendo. A gente está se conhecendo ainda”, explica Isabella. Rafael acrescenta em seguida: “Este é um dos momentos mais arriscados. O Dario está se dispondo a estar perto dela, e nesse processo acaba tirando ela daquele lugar onde estava acostumada, de conforto, que é a casa onde mora. Há um certo desconforto, diante de toda a beleza e da poesia deste parque, que é onde a gente está. Essa posição me agrada muito”. A garota, no entanto, logo o tranquiliza: “Nesse encontro vai ser tudo normal, ele não vai passar mal. São apenas os dois, a Sofia e ele. Estamos nos divertindo. Ela não tem amigos, nunca sai, as companhias dela são os brinquedos”.
Tem muito ator tarimbado por aí que declara com todas as letras que não gosta de trabalhar ao lado de crianças. Há motivo para tanto medo assim? “É difícil competir, conseguir chamar atenção ao lado de parceiros assim, digamos. Mas é preciso entrar no jogo. Não tem que lutar contra uma situação como essa, e, sim, usar o que ela traz de frescor, de vida para o set. E esse é o grande mérito da criança, a espontaneidade que eles têm. A grande volta é não querer controlá-los. Tentar usar todo e qualquer estímulo a favor. E, mesmo sendo uma criança, a Isabella tem muita consciência do que está fazendo”, conclui o parceiro de cena.
Mas se a cena principal é só entre o Dario e a Sofia, o que a Janaína Kremer está fazendo no set? Ela explica: “Não estou na cena da roda gigante. Mas vou filmar uma outra, também por aqui, mais tarde. A gente fez uma, ainda de manhã, na Praça da Matriz. Era o primeiro encontro deles no filme, e é quando ela fala desse caso. É, também, quando começa a aparecer, aos poucos, o tipo de relação que eles têm. Agora, a cena que vamos fazer depois é num outro momento, mas ainda antes dos eventos maiores. É o início de uma cena que vamos continuar filmando daqui alguns dias. É que eles se encontram à noite, vão tomar uma cerveja, e acabam transando”. Opa, então vai ter sexo? “Hoje, infelizmente, a gente não vai transar, só conversar. Mas é só o começo” declara a atriz, entre risos. E assim nos despedimos, só na promessa de muitos sustos – e outras cenas mais picantes – que vão ficar apenas para quando o filme estiver pronto. A previsão de lançamento nos cinemas é para o segundo semestre de 2019!
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