Os festivais de cinema são engrenagens vitais. Em vários sentidos. Primeiro, pois tornam visíveis certas obras que nem sempre conseguem espaço no mercado exibidor; segundo, porque abrigam reflexões sobre o cinema e os rumos que ele pode tomar; terceiro, pois reúnem pessoas de interesses comuns que, uma vez dialogando, podem trabalhar conjuntamente em prol de algo; quarto, porque são celebrações que criam pontes artístico-profissionais imprescindíveis. Poderíamos enumerar vários outros aspectos que tornam esses eventos cinematográficos essenciais. E, quando o assunto é cinema de gênero, essas ocasiões têm a importância adicional de ponderar sobre e visibilizar abordagens que recorrem a algumas tradições de modos heterogêneos. Quantas abordagens cabem ao falarmos do cinema de horror, por exemplo? E de quantas maneiras podemos utilizar o sci-fi como moldura para pensar o nosso presente a partir de uma lógica futurista diversa? Dentro dessa constatação, o Cinefantasy – Festival Internacional de Cinema Fantástico é uma oportunidade ímpar dentro do nosso cenário de programações cinematográficas. E uma das coisas que chama a atenção na 13ª edição deste evento, que acontece presencialmente em São Paulo de 07 a 12 de junho, é que nela serão entregues os prêmios da FantLatam, a Alianza Latinoamericana de Festivales de Cine Fantástico, entidade presidida por Monica Trigo, uma das idealizadoras do evento e diretora geral do Cinefantasy.

Não à toa a palavra “diálogo” está no título deste artigo. Afinal de contas, uma das grandes utilidades dos festivais de cinema é criar um espaço propenso a diversas trocas construtivas. Então, a existência de uma entidade como a FantLatam configura um importante ambiente de intercâmbios entre iniciativas com intenções parecidas, mas que existem dentro de realidades singulares. No site da FantLatam, são listados alguns tópicos como princípios: “Promover e apoiar o cinema fantástico latino-americano; Compartilhar experiências de organização e dados úteis entre os membros; Compartilhar e/ou trocar material audiovisual entre os membros; Promover e apoiar a criação de outros festivais de cinema fantástico em países da América Latina que não possuem, por meio da troca de experiências organizacionais e/ou conteúdos audiovisuais; Estabelecer vínculos de associação com outros festivais do mundo, bem como com outros grupos de festivais de cinema dedicados ao mesmo tema, para troca de experiências e/ou obras audiovisuais”. A leitura dessa lista de intenções deixa claro que a FantLatam é uma iniciativa gregária, daquelas que existem para incentivar a consolidação dos eventos que dela participam, mas também para ampliar a celebração do cinema fantástico a outras praças. Ninguém constrói nada sozinho, então essa organização tem como princípio, justamente, gerar um espaço adequado e unificado para pensar como os eventos podem dialogar para crescer em conjunto, claro, respeitando as particularidades e tamanhos de cada um deles.

NÃO É (APENAS) CINEMA TRASH
O guarda-chuva do cinema fantástico está se abrindo cada vez mais dentro da concepção curatorial dos eventos de cinema. Muito se enganam os que acreditam que esses festivais trabalham apenas com produções de horror e, o que é ainda menos verdade, que os filmes selecionados pertencem a uma esfera trash da produção cinematográfica. Evidentemente que dentro dos recortes das curadorias, há um bem-vindo espaço para filmes que não dialogam diretamente com as lógicas de qualidade impostas pelo mercado, ou seja, às realizações que utilizam precariedades como elementos de linguagem. Mas, é importante compreender a pluralidade dos eventos agregados pela FantLatam, a Alianza Latinoamericana de Festivales de Cine Fantástico. Conversamos brevemente com a presidenta da entidade, Monica Trigo, para saber sobre as ações que visam transmitir ao público a verdadeira potência dos eventos latino-americanos de cinema fantástico. “O Fantasporto, em Portugal, não é assim (majoritariamente de cinema considerado trash). Por conta e alguns festivais terem exibidos filmes com esse recorte, isso se estigmatizou. Mas, é algo que não representa o todo. Os filmes que recebemos para o prêmio, os que estão com maiores indicações, não são trash. Neste sábado, 11, teremos uma reunião da FantLatam, com a presença de 10 membros (de 22) que estão em São Paulo e os demais participarão remotamente. Vamos redigir um documento com metas da FantLatam. Estamos discutindo justamente sobre o que nós precisamos conjuntamente como aliança. O que será dos festivais fantásticos? Alguns desses eventos nem tiveram edição nos últimos dois anos”.

DIMINUIR DISTÂNCIAS E AGREGAR PARA EXPANDIR
É claro que os desafios de uma entidade como a FantLatam são imensos. Imagine como deve ser árduo pensar políticas conjuntas para realidades tão diversas como as que temos ao longo do vasto e plural território da América Latina. Boa parte dos países que compõem o nosso extenso continente sequer têm práticas públicas específicas de incentivo para esse cinema de recorte fantástico. E, na nossa conversa, Monica afirmou que encontrar mecanismos para mudar esse panorama é uma das coisas a serem discutidas neste sábado, 11, na reunião que visará criar uma política unificada de metas. “Nossa ideia é romper os muros que nos separam. Precisamos nos auxiliar, inclusive a fim de fomentar os eventos mais novos. É importante um filme de Porto Rico chegar ao Brasil, por exemplo. E essa difusão de conteúdo é a primeira missão que pretendemos dentro da FantLatam. Entendo que a nossa meta como associação é ter uma curadoria comum para difundir os filmes com mais eficiência. Considero essa uma missão quase revolucionária (risos). Até porque não costumamos acompanhar toda essa produção latino-americana com uma estrutura adequada. Construir pontes é fundamental. Cada vez mais temos de compartilhar coisas como experiências de gestão cultural. O Cinefantasy tem bandeiras muito claras, mas em outros países as bandeiras são outras. Os ameríndios formam a maioria da população da Bolívia, por exemplo. Há pessoas tentando organizar eventos nesses países e a nossa missão é ajuda-los”. E para que isso aconteça, é preciso muito diálogo, correto?

Cena de “Carro Rei”, um dos indicados ao prêmio FantLatam 2022.

“Neste sábado, 11, queremos construir essa política de metas que considero fundamental, fruto de um diálogo de 22 membros de eventos de cinema fantástico da América Latina”, completa Monica. Assim, a FantLatam, a Alianza Latinoamericana de Festivales de Cine Fantástico, pode ser tornar uma inciativa-paradigma para outros nichos que, logo, podem ganhar visibilidade se seus integrantes tiverem metas em comum. E, ainda de acordo com Monica, uma das coisas mais importantes é evitar rivalidades, ou seja, mirar o caminho exatamente oposto: o reforço conjunto das potencialidades de cada um desses eventos: “Seria uma burrice sem tamanho não transformar em potência o que realizamos na América Latina. Permanecer no universo do território é muito pouco. Não basta. Há alguns festivais que disputam entre si e isso realmente precisa ficar para trás. Nosso objetivo principal não é a difusão? Então, a disputa cai no vazio. Acho inadmissível não dialogar, não construir perspectivas para o futuro. Temos muito a fazer. É a questão de ter uma unidade continental, de caminhar para frente de forma coletiva, respeitando diferenças, mas tendo objetivos comuns. A briga é essa”. Sabem aquela brincadeira de “se juntos já causam, imaginem juntos”? Pois é, a ideia da associação é, exatamente, criar uma unidade com capacidade de articulação, inclusive política, para modificar efetivamente um panorama de produção, difusão e discussão desses filmes.

A CONTRIBUIÇÃO DO BRASIL
A FantLatam, a Alianza Latinoamericana de Festivales de Cine Fantástico é composta de diversos eventos latino-americanos do gênero (a lista completa você pode conferir neste link). E é emblemático que a entidade criada em 2019, um pouco antes do contexto pandêmico, ser presidida por uma mulher brasileira. Monica é entusiasta das políticas e dos discursos afirmativos, tanto que o Cinefantasy (evento que ela dirige e do qual é uma das idealizadoras) é orientado por uma diversidade de representações e corpos. “Estamos diagnosticando que esse olhar para as questões de gênero e outros discursos afirmativos é uma tendência. Os filmes LGBTQIA+ estão incorporados em muitos eventos irmãos, mas o Cinefantasy sempre abriu o olhar ao cinema que registra essa temática. Nossos curadores convidados entendem a expectativa, por isso nem faço mais a curadoria. É importante trazer diversidade para a nossa pauta. A Lina Duran, diretora do Insolito, Festival de Cine de Terror y Fantasia, do Peru, ficou interessada em montar uma mostra de filmes indígenas por lá. Uma das metas da FantLatam é promover esse intercâmbio, mas também pressionar os governos para que criem linhas de investimento específicas para isso. A ideia desse documento é justamente criar perspectivas diversas para a América Latina”.

Monica Trigo, a presidenta da FanlLatam

Pode-se dizer que essa reflexão é uma das grandes contribuições da experiência brasileira, especialmente do Cinefantasy, para o cenário do continente que continua se expandindo. Numa realidade de desmonte cultural, como o que vivemos no Brasil nos últimos seis anos, esse tipo de articulação acontecendo em solo verde e amarelo é algo a ser festejado. Vida longa aos festivais de cinema. Vida longa ao pensamento sobre diversidade de recortes, interesses e abordagens. Vida longa à FantLatam, a Alianza Latinoamericana de Festivales de Cine Fantástico e ao Cinefantasy.   

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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