Uma das ótimas sacadas da curadoria da VII Mostra Curta Vazantes é a reunião dos filmes em blocos temáticos. Com essa organização, o espectador tem uma experiência continuada, dentro da qual fios e tramas se conectam causando curtos-circuitos. Assuntos e tons diferentes encontram respaldo e amparo uns nos outros. O programa inaugural chamado Esperança é formado por quatro produções de pegadas e estilos próprios, mas que apresentam semelhanças capazes de gerar esses fortes pontos de contato, possibilitando assim a construção de um painel. O que sobressai num primeiro momento é o protagonismo feminino/negro. Mulheres pretas são confrontadas por dilemas que podem ser significativos para o restante de suas vidas. Também há uma recorrência de atitudes e tomadas de posição atravessadas por arbitrariedades das sociedades formatadas pela ausência do homem/pai. Essa falta é encarada como um sintoma grave e recorrente. Dois desses filmes se passam à beira (ou dentro) do rio, enquanto a dupla restante desloca a ação à geografia urbana.

Cena de “O Barco e o Rio”

 

O amazonense O Barco e o Rio (2020), vencedor de cinco prêmios no Festival de Gramado de 2020 – Melhor Curta, Direção, Fotografia, Direção de Arte e Filme do Público –, mostra a separação entre as irmãs que moram num barco. Uma delas é religiosa e reprova o comportamento “mundano” daquela que, por sua vez, demonstra insatisfação com a morosidade de uma vida sem novidades. Esta quer ir além, “aprofundar-se no rio”, forma simbólica de dizer que espera bem mais da rotina. O diretor Bernardo Ale Abinader faz um filme ritmado pelo balanço das águas, esse sacolejo que coloca em xeque a inércia. A jovem temente a Deus também tem desejos interditados por uma instituição (Igreja) que a reprime, levando-a ao choque constante com a irmã mais moça. A desunião também é vista em Neguinho (2020), de Marçal Vianna, mas acrescida do elemento racial. A discussão entre a professora negra e a mãe indignada com o racismo da escola é mais um indício da falta de unidade, de uma divisão que enfraquece.

No contexto de um mundo predominantemente regido por homens brancos, tanto as mulheres de O Barco e o Rio quanto as de Neguinho vivem exclusões cotidianas. Certamente, as moças teriam bem mais força se somadas, não divididas. De fato, a tática de “fracionar para conquistar” está presente subliminarmente em ambos os filmes, proveniente das estruturas hegemônicas da coletividade. Outra convergência é a solidão de mulher negra. Em Terceiro Dia (2020), a cineasta Jéssica Queiroz apresenta uma protagonista abandonada à própria sorte no hospital em que acabou de dar a luz. Sem recorrer a excessos expositivos, com muita sensibilidade, ela constrói um pequeno conto sobre o isolamento doloroso que enfraquece e priva mulheres de espaço de manobra. Fumando como que para negar simbolicamente a responsabilidade de ser mãe, a jovem rebelde ecoa na falta de disposição de uma das moradoras do barco amazonense para ser vítima do cabresto. Nos quatro exemplares do recorte, a geração da vida, algo que poderia ser entendido como um evento sublime, adquire contornos de drama em virtude da solidão.

Cena de “Neguinho”

 

Já o alagoano A Barca (2020), de Nilton Resende, baseado no conto Natal na Barca, de Lygia Fagundes Telles, carrega um quê de fantástico. Em meio a cores e gestos que podem ser entendidos como parte de um fluxo de sonho ou irrealidade, novamente a maternidade é marcada pela ausência paterna. Uma mãe atravessa o rio de madrugada para levar seu recém-nascido à consulta médica. Ela cita a partida do marido, situação que seguramente ajuda a determinar o isolamento e o desamparo da mulher negra. O sujeito desconhecido que ronca na embarcação é uma presença cuja função acaba sendo simbolizar o homem praticamente alheio ao sofrimento das mulheres, “descansado” ao ponto de dormir enquanto os dramas são cadenciados pela aparente calmaria das águas. Assim como em O Barco e o Rio, aqui há uma separação entre uma figura feminina maternal e a outra supostamente descrente dessa missão tida por muitas como divina. Aliás, nos dois curtas-metragens a religiosidade se depara com a sugestão de uma noção menos conformada com a tradição, ainda que no amazonense a fé seja enxergada enquanto repressora e no alagoano tenha conotação confortante. De todo modo, são diálogos permitidos pela curadoria.

Em Neguinho a questão racial é frontalmente debatida. Cortar ou não o cabelo do menino negro para ele continuar estudando na escola de elite? Em Terceiro Dia, o que sobressai nesse sentido é a desproteção estampada nos planos da protagonista desorientada enquanto a vizinha branca recebe cuidados do marido negro na cama ao lado. O Barco e o Rio e A Barca não chegam a trazer à tona especificamente essa discussão, mas a convocam nas entrelinhas por meio de todas as circunstâncias se dando na rotina de afrodescendentes repetidamente angustiadas pelo desamparo. O deslocamento, a necessidade da travessia, para usar uma palavra mais poeticamente forte, caracteriza todas essas histórias. Numa delas, a caçula deseja ir e a primogênita prefere ficar (será?); na outra, as desconhecidas trocam experiências numa jornada marítima noite adentro; também há a locomoção diária da mãe periférica que estuda/trabalha numa área nobre da cidade do Rio de Janeiro; por fim, a importante transição simbólica (tornar-se mãe), entendida como ambígua, pois se trata de uma mudança capaz de fazer vícios sociais serem repetidos.

“A Barca” / “Terceiro Dia”

 

O nome desse recorte da VII Mostra Curta Vazantes, Esperança, não se dá pelas promessas de que as coisas vão melhorar. Não há certezas, mas chances. Em O Barco e o Rio, a separação pode ser benéfica às irmãs, uma delas livre das restrições e a outra, talvez, sentindo-se pronta para seguir o desejo. Em A Barca, uma das protagonistas parece aliviada ao conversar com a estranha. Em Neguinho, é reconfortante pensar que, depois da tensão entre as mulheres negras separadas pelas engrenagens excludentes da sociedade, talvez ambas consigam se fortalecer – uma pela reafirmação de seu posicionamento político diário e a outra em virtude da tardia tomada de consciência. Já Terceiro Dia deixa um sabor amargo ao acabar abruptamente, afinal de contas o abandono de uma criança não é algo a ser celebrado. Porém, o final aberto deixa questões no ar (será que ela volta para buscar o bebê? Ou a atitude desesperada será vital à sua reestruturação num mundo sem suportes?). Como dito acima, nada é prometido, mas a compreensão dos mecanismos de exclusão já configura uma percepção e tanto. Curiosamente, de todos eles, o mais duro, o com menos indícios de presságios surgindo no horizonte, é exatamente o único dirigido por uma mulher.

Filmes assistidos online no VII Mostra Curta Vazantes, em junho de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, crítico de cinema e membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministra cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ e no Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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