Na nossa cobertura da primeira edição do Festival Internacional de Cinema de Goiânia, temos enfatizado a alegria diante dessa inauguração de jornada. Os festivais cinematográficos são mecanismos de suma importância a várias partes da cadeia da Sétima Arte. Para o público, é uma oportunidade excepcional de conferir filmes e atividades que nem sempre estão à disposição nos circuitos comerciais; para os cineastas, uma vitrine fundamental para suas criações; aos produtores e outros profissionais, ocasião propícia para intercâmbios e demais trocas enriquecedoras. Mesmo que a primeira edição do evento goiano seja online e em formato panorama, essas benesses têm espaço garantido. Geralmente, os eventos de cinema possuem recortes regionais, até como forma de celebrar a produção local de seus territórios. Pensando em dar visibilidade aos curtas-metragens da Mostra Origens (que contempla filmes feitos no estado do Goiás por cineastas goianos), o Papo de Cinema resolveu assistir a esses curtas e fazer um balanço crítico do que a curadoria nos apresentou – seleção esta assinada por Flavia Candida e Vanessa Gouveia. O programa de seis curtas-metragens integrantes da Mostra Origens tem por característica principal a diversidade (de técnicas, de olhares, de interesses, de abordagens, etc.). Vamos separá-los em documentários e ficções por aqui.
OS DOCUMENTÁRIOS ATENTOS À NOSSA CONTEMPORANEIDADE
Vivemos tempos sombrios no Brasil. Desde a posse do atual presidente da república, Jair Bolsonaro, a cultura é vítima de ataques sistemáticos e desmontes que cheiram a estratégia ideológica. Além disso, as pautas de natureza identitária são combatidas pelos apoiadores de Bolsonaro como se fossem irrelevantes dentro de um plano de sociedade para todos. Tendo isso em vista, os dois curtas documentais da Mostra Origens do Festival Internacional de Cinema de Goiânia 2022 se debruçam sobre presentes questões de resistência, ou seja, estão antenados com lutas que fervilham em nosso país. Ambientado na Chapada dos Veadeiros, Capim-Navalha (2021), de Michel Queiroz, é co-financiado pela Lei Aldir Blanc (cuja continuidade está provisoriamente vetada por Bolsonaro). Seus protagonistas são dois homens transexuais de relações quase antagônicas com seus respectivos corpos. Um deles aparece com a pele exposta, sem pudores ao ser retratado pela câmera. Ele embasa teoricamente processos e fala num tom quase místico sobre sua relação com a natureza. O outro mantém a pele coberta, discorre sobre situações traumáticas da infância e demonstra menos certezas do que seu colega com quem quase nunca divide a cena.
Já em Três Vidas, Uma História (2021), de Arthur Cintra, conhecemos três jovens estudantes de universidades públicas falando a respeito dos desafios para ingressar e, depois, permanecer estudando no Brasil, especialmente quando se tem baixa renda. O formato narrativo convencional (entrevistas com personagens, as famigeradas “cabeças falantes”) é ligeiramente quebrado numa das dinâmicas, a que mostra o depoimento do estudante trabalhando numa feira. Ele não pode parar, pois daquilo depende o seu sustento. Várias questões são colocadas, poucas ganham efetivamente algum aprofundamento, mas há um painel sintomático de uma área tão precarizada nos últimos anos: o ensino superior público. Se não é primoroso ou mesmo inventivo no que diz respeito à sua linguagem, o curta nos permite acesso a três histórias que certamente se repetem com variações e semelhanças nos confins de um país com dimensões continentais, território que, há certo tempo, tem deixado a educação sucateada.
AS FICÇÕES: SOLIDÃO, FAMÍLIA E SAUDADE
As ficções em curta-metragem da Mostra Origens do Festival Internacional de Cinema de Goiânia 2022 formam um painel bem mais diversificado e menos coeso narrativamente falando. Ainda assim, há elos possíveis. Talvez os dois filmes que melhor podemos colocar em paralelo são Tic Tac (2021), de Luara Moraes Leão, e Em Busca (2021), de Netto Mello. No primeiro, a cineasta utiliza a técnica conhecida como pixilation – animação stop motion em que a atriz é captada quadro a quadro como fotos – para criar um mundo imaginário, de certa forma aludindo a vanguardas como o Expressionismo Alemão. A fuga da morte (entidade que aparece apenas por meio da sombra), o movimento estranho e o tique-taque do relógio auxiliam no desenho da camada fantástica da qual a protagonista se liberta no encerramento. O segundo apresenta uma mulher caminhando sozinha pela floresta. Não sabemos o quê ou quem ela está procurando, mas a percebemos frustrada porque o telefone não tem sinal. O encerramento não revela muito sobre a essência dessa busca, apenas dá a entender que a personagem desejava compartilhar aquela beleza com o mundo em tempo real. Esses dois curtas colocam mulheres solitárias em espaços abertos que acentuam seus isolamentos, mas nada que crie camadas simbólicas ou subtextos consistentes o suficiente para um debate profundo.
O mais longo dos curtas-metragens da Mostra Origens do Festival Internacional de Cinema de Goiânia 2022 é A Última Valsa (2021), de André Srur. Ao longo de um pouco mais de 20 minutos, temos os efeitos imediatos da morte de uma mulher. A fatalidade impõe um novo cenário à família. Seus três filhos se preocupam com o pai remanescente que deverá morar sozinho, mas não ao ponto de permanecerem. O único disposto a ficar é o rapaz discriminado pelo pai por ser homossexual. Os diálogos imaginados (sonhados?) entre o viúvo e a morta deflagram o cenário familiar num filme em que o trabalho do elenco se destaca mais que qualquer coisa. Por fim, Quando Você Está Aqui (2021), de Victor Vinícius do Carmo, traz um interessante jogo de cena. Nele, os corpos de dois amantes se aproximam e se repelem numa coleção de movimentos ambíguos que confundem muitas vezes as reais intenções. Sem didatismos ou excessos de explicações, somos tragados ao turbilhão de emoções contraditórias quando o fim de um relacionamento parece inevitável. A montagem desempenha um papel fundamental para que o filme funcione dentro dessa perspectiva sensorial. O resultado é uma trama valiosa por esse bailado de corpos que se desejam mutuamente, mas que, provavelmente, não encontram uma equivalência nos protocolos de convivência cotidiana.
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