15 dez

Fest Aruanda 2021 :: Os monstros invisíveis (Mostra Competitiva Sob o Céu Nordestino de Curtas-Metragens Paraibanos)

É interessante o exercício de avaliar os curtas-metragens de uma mostra competitiva enquanto conjunto único de filmes. No 16º Fest Aruanda do Audiovisual Brasileiro, a mostra competitiva nacional se concentrou em obras de temática familiar, focadas no distanciamento e na saudade dos entes queridos — provavelmente, um reflexo dos tempos de pandemia e isolamento social.
No caso da seleção Sob o Céu Nordestino, focada especificamente na produção paraibana, o recorte ajuda a perceber as questões específicas deste Estado brasileiro. O amplo recorte dos curadores inclui documentários, ficções e animações; de drama, terror e suspense. As tramas se passam na cidade ou no campo, em amplos espaços abertos ou no interior das residências. Um tema ultrapassa, de modo geral, estas produções: a presença de uma ameaça invisível.

Terra Vermelha

O exemplo mais claro vem de Noite no Sítio (2021), filme de terror dirigido por Lucas Machado. O exercício de gênero aposta no olhar infantil diante de acontecimentos assustadores na casa do avô. Para o criador, o foco jamais se encontra no roteiro em si, algo perceptível pela suspensão abrupta da trama. Em contrapartida, ele se dedica à ambientação, às luzes e à névoa sinistra, produzindo a impressão de um perigo iminente rondando as crianças sem a supervisão dos pais.
Em Terra Vermelha (2021), de Allan Marcus e Leonardo Gonçalves, o risco provém de uma fonte muito diferente. Nesta ficção de aparência documental, um trabalhador do campo vive isolado em suas terras, até se deslocar à cidade. No local, descobre a Covid-19: ele presencia os moradores usando máscaras, evitando a presença dos demais e, se possível, permanecendo fechados em suas casas. O belo curta-metragem, provavelmente o melhor desta mostra, aborda a diferença de informações entre os centros urbanos e as zonas afastadas, assim como a impressão de distopia gerada pela pandemia de coronavírus. Em alguns momentos, o protagonista sem nome aparenta se encontrar num faroeste, caminhando a esmo por uma cidade abandonada.

O que os Machos Querem

Às vezes, o temor provém do sexo masculino. Dois filmes se reúnem na evocação da figura de um marido/pai agressor, cujo rosto permanece ausente nas imagens. O que os Machos Querem (2021), de Ana Dinniz, aborda a desigualdade de gênero pela perspectiva feminina: são as mulheres que dominam a cena, sobretudo com uma faca na mão, dilacerando pedaços de carne em forma simbólica de justiça ou vingança. A leitura de um conto, filmado através de sombras lúdicas, relembra as tradições opressoras que precisam ser desconstruídas.
Tamanha força se opõe à delicadeza de Incúria (2021). O diretor Tiago A. Neves imagina a história de uma mãe agredida pelo marido (a excelente Verônica Cavalcanti), porém ainda em fase de aceitar sua condição de vítima. É interessante que o roteiro narre este episódio pelo olhar da filha jovem, representando as novas gerações do feminismo e da luta pela igualdade. A ausência do homem durante 15 dias provoca uma sensação mista nas personagens e no espectador: seria um alívio, ou um perigo ainda maior, devido à possibilidade de retorno a qualquer instante? Intervenções em fotografias still, na cena final, encerram muito bem este drama.

Boyzin

Em outros casos, o monstro constitui o preconceito social. Boyzin (2021), de R.B. Lima, imagina o relacionamento entre um jovem dançarino e o homem mais velho que o conhece numa casa noturna. O curta se delicia com a apresentação de dança na íntegra, além da troca de olhares, as luzes neon, a atmosfera sensual e lânguida — o que filia o projeto a longas-metragens LGBTQIA+ como Vento Seco (2020) e Tinta Bruta (2018). No entanto, a relação de forças (financeiras, de idade, de classe social) entre os personagens produz uma tragédia com ares teatrais. Trata-se de uma das direções mais maduras, e um dos projetos esteticamente mais ambiciosos da seleção Sob o Céu Nordestino.
Em chave mais ingênua e didática, a animação Flor no Quintal (2021) se atenta a outra minoria: os indivíduos que sofrem com a alopecia, ou seja, a perda de pêlos e cabelos no corpo. A diretora Mercicleide Ramos parte de uma garotinha traumatizada pela falta de cabelos, vivendo isolada numa fazenda assustadora — nem mesmo os pais da criança se encontram no local. O andamento do roteiro é simples até demais: parte considerável da trama se resume a letreiros explicando o que a garota pensa e decide fazer. O foco se volta ao ensinamento a respeito da tolerância e respeito às diferenças.

Tecendo Histórias

Dois documentários completam a lista de filmes, ambos voltados na preservação cultural. O medo, neste caso, deriva da extinção de importantes manifestações artísticas. Tecendo Histórias (2021), de Diego Pontes, oferece um registro polido e bem fotografado à prática da tecelagem. Um experiente artista apresenta sua oficina, menciona a transmissão de conhecimentos entre gerações e a valorização insuficiente deste ofício. O curta-metragem segue um caminho seguro, sem ousadias de linguagem, porém competente em sua proposta.
Para Adarrum (2020), a atenção se volta ao valor deste ritmo e da dança para os orixás. O diretor Thomas de Freitas leva a coreografia e o estilo musical às ruas da cidade, em praça pública, unindo a religiosidade íntima à expressão em espaço urbano. A direção prioriza a clareza e o senso de homenagem em detrimento da estética arrojada. Este é o caso em que a direção se coloca numa posição humilde, cedendo o palco para seu tema brilhar por si próprio, com a mínima intervenção. Ironicamente, a necessidade de frisar a existência destas atividades sublinha, à revelia, o fato de não receberem o devido reconhecimento popular e institucional.

Adarrum

A Mostra Sob o Céu Nordestino se encerra com uma lista variada de experiências e iniciativas. A maioria destes filmes poderia constar na seleção principal, competindo de igual para igual com os maiores projetos de outros Estados — reflexo da forte produção local, e da importância desta vitrine oferecida pelo Fest Aruanda, o maior festival paraibano do país. Os curtas-metragens estão atentos ao mundo, destacando questões que vão da fome à violência doméstica e a LGBTQfobia. Além disso, despertam a atenção a novos criadores que esperamos rever em breve, tanto em João Pessoa quanto em outros festivais pelo Brasil inteiro.

Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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