A notícia do último domingo, dois de fevereiro de 2014, não poderia ser mais trágica: o cineasta Eduardo Coutinho foi morto, aos 80 anos, em casa, pelo próprio filho. O cineasta, um dos principais do Brasil, teve sua carreira de quase 50 anos e 20 filmes – em sua maioria, documentários – encurtada. E o corte foi profundo, pois além de ser um reconhecido e premiado diretor, Coutinho tinha um olhar sobre as pessoas que poucos tem: ele as compreendia. Se não, ousava tentar. O que é mais do que a maioria pode dizer que faz.

Para homenagear o documentarista, a equipe do Papo de Cinema resolveu eleger cinco de seus melhores filmes – e mais um especial que, apesar de recente, não teve tanta repercussão.  É pouco para lembrar de uma trajetória tão ímpar na cinematografia brasileira, mas é o que podemos oferecer de melhor: rememorar seus trabalhos tentando olhá-los da mesma forma que ele enxergava as pessoas. Bem realizados, cheios de camadas e, acima de tudo, com extrema sensibilidade. É o mínimo que tentamos fazer por aqui.

 

Cabra Marcado Para Morrer (1984)
Por Marcelo Müller

Em 1984, pouco antes do fim definitivo do regime militar no Brasil, o cineasta Eduardo Coutinho resolveu revirar o passado, mais precisamente um capítulo até então arquivado no qual se viu vítima dessa famigerada ditadura que governou o Brasil durante mais de duas décadas. Nos idos de 1964, ele filmava a vida do camponês João Pedro Teixeira, líder paraibano assassinado dois anos antes, mas foi obrigado a interromper a produção por causa do golpe. Ao retomar o material, o utilizou como base de um semidocumentário sobre a época, rememorando as lutas que proliferavam no interior, os confrontos de trabalhadores e senhores da terra, para, dessa maneira, realizar um diagnóstico preciso e emocional de um período conturbado. Cabra Marcado para Morrer é esse filme que o agora falecido Coutinho nos deixa como testemunho, como documento imprescindível para que entendamos tanto as tensões sociais que sempre surgiram no Brasil quanto o recorte de um período histórico específico, no qual a força calou muitos que lutavam montados em suas ideias de reforma social. Um legado e tanto esse o de Eduardo Coutinho, artista que fazia brotar o essencial do prosaico e que, aqui, mostrou nossa conturbada história exemplarmente. 


Santo Forte
(1999)
Por Dimas Tadeu

Um dos inegáveis talentos de Coutinho era o de arrancar das pessoas depoimentos sinceros, espontâneos e emocionantes. Por mais que seus filmes poetizassem a técnica ou tecessem um delicado enredo entre as histórias contadas, nada disso seria possível se o diretor não conseguisse extrair dos entrevistados as palavras e até as canções que queria. Em Santo Forte, filme no qual Coutinho dialoga com a espiritualidade numa favela carioca, isso não foi diferente. Por sinal, trata-se de um dos primeiros longas em que o diretor deixa transparente, no corte final, inclusive o pagamento do cachê aos entrevistados. O que muitos poderiam julgar uma artificialidade se converte em mais pura natureza humana nas mãos do diretor, que esboça, ainda em 1999, um cenário que diz muito sobre o mundo atual, seus conflitos e sua complexidade. Como um bom Coutinho, é filme pra sentir de corpo e alma.

 

Edifício Master (2002)
Por Rodrigo de Oliveira

Doze andares. 23 apartamentos em cada. Mais de 500 habitantes. Este é o Edifício Master, situado no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. 110 minutos. Mais de dez depoimentos interessantíssimos sobre a vida comum de pessoas normais. Este é Edifício Master, o documentário dirigido por Eduardo Coutinho e vencedor do Kikito no Festival de Gramado. A diversidade de figuras entrevistadas impressiona. Não tanto por estarem juntas em um mesmo filme, mas, sim, por morarem no mesmo prédio. Desde casais de velhinhos simpáticos, passando por prostitutas e por pessoas com sérios problemas de sociabilidade. Tem de tudo no Edifício Master. Como não prestar atenção, ou até mesmo não se emocionar, com a história da senhora que foi assaltada e apenas não cometeu suicídio porque não queria morrer com contas pendentes? Ou não se surpreender com a garota que nunca encara as pessoas a não ser quando chamada a sua atenção pelo entrevistador sobre o fato? Eduardo Coutinho faz de Edifício Master um estudo sociológico de um pequeno habitat. Um tema que poderia até parecer corriqueiro, se visto de longe. Mostra que ideias simples, bem executadas, podem resultar belíssimos trabalhos. Coutinho fazia parecer fácil, genial como era.

 

Peões (2004)
Por Robledo Milani

Quando dois dos mais importantes documentaristas brasileiros decidiram registrar um dos fatos mais relevantes da nossa história política recente – a eleição de um operário ao posto de Presidente da República – cada um seguiu um caminho diferente. Se João Moreira Salles foi pela trilha mais óbvia – mas não por isso menos competente – em Entreatos (2004), acompanhando o dia a dia da campanha eleitoral de Luís Inácio Lula da Silva, Eduardo Coutinho mostrou mais uma vez sua genialidade ao apostar no inesperado. Em Peões, ao invés de invocar a imagem de Lula como um possível “salvador”, ele vai atrás de suas origens, mostrando que a diferença entre ele e todos os que o precederam naquele posto está na base, de onde vieram. Mas, mais do que isso, seu olhar se direcionou àqueles que começaram exatamente na mesma situação, questionando-se onde estariam tantas décadas depois. E é justamente ouvindo e conversando com o povo, com o cidadão que melhor representa a maioria do país, que consegue construir um dos retratos mais acurados a respeito deste fenômeno social. Um estudo que se fez justamente se aproximando do povo, e não isolando-se de tudo e de todos. Coutinho, mais do que nunca, mostra neste filme o quão ciente era dos problemas, e das virtudes, deste grande Brasil.

 

Jogo de Cena (2007)
Por Renato Cabral

Como Coutinho explora no próprio título de seu documentário, Jogo de Cena é como uma brincadeira que se dá através de diversas encenações. Misturando o real e a ficção, o diretor coloca grandes atrizes, como Fernanda Torres e Marília Pêra, ao lado de outras anônimas para encenarem depoimentos de algumas pessoas intercalados com depoimentos reais. Nisto, o diretor nos coloca a brincar de adivinhar quem conta a verdade e quem encena e, mais que isto, desbravar a linha tênue entre realidade, ficção e documentário. Porém, mais que esta ciranda de atrizes e de encenações, Coutinho traz um trabalho que evoca o poder do feminino, mostrando a pluralidade da mulher. Genial como sempre, ao trazer personagens tão fortes e tão próximos do espectador, ele nos comove com a sinceridade de seu cinema sobre o que é mais imprescindível e interessante: pessoas, histórias e sentimentos.

 

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As Canções (2011)
Por Matheus Bonez

Há músicas que marcam etapas da vida de cada um. Caso as ouça, mesmo vinte anos depois, que seja, a memória faz questão de lembrar como nos sentimos. Seja quando as ouvimos pela primeira vez ou quando elas fizeram parte de um momento-chave da nossa história.  Se fosse fazer uma aposta, duvido que alguém diria o contrário. E o derradeiro filme de Coutinho faz exatamente isto: uma aposta sobre como determinadas canções marcaram pessoas aleatórias, seja em histórias de amor, familiares e afins. Aqui, seus “personagens” (mais reais do que nunca) são desafiados a contar porque determinada música é aquela de sua vida. E, com sua sensibilidade mais do que apurada, Coutinho consegue desnudar os pensamentos de cada um de seus entrevistados, revelando a vida e a emoção de cada um por conta de uma simples canção. Aliás, simplicidade é a palavra-chave de As Canções, mas não algo irrelevante. Pelo contrário. Justamente pela falta de ambição, Coutinho entregou uma pequena obra-prima que, talvez, com a sua morte, chegue aos olhos (e ouvidos) da grande massa de espectadores.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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