Rafael Primot é um cara multimídia. Podemos encontrar créditos dele como ator, cineasta, escritor e dramaturgo. Uma hora está no teatro, mas na semana seguinte tem novidade na televisão, para logo depois estrear alguma novidade no cinema. Nascido e criado no interior de São Paulo, já foi dirigido por Antunes Filho e Jô Soares, lançou livro e excursionou por Portugal, tá em novela na Rede Globo e, ao mesmo tempo, estreando na telona com seu segundo longa como realizador: Todo Clichê do Amor. Aproveitando essa ocasião, fomos até São Paulo bater um papo com o realizador, que também acumula outras funções no projeto – entre elas, a do protagonista masculino, em uma trama cercada por mulheres. E foi justamente numa sala de teatro que ele nos recebeu para uma conversa descontraída, na qual falamos sobre suas inspirações, vontades, amigos e como é abraçar tantas frentes ao mesmo tempo. Confira!
Rafa, você é diretor, roteirista e ator de Todo Clichê do Amor. Como surgiu a ideia do filme?
Ele nasceu da vontade de fazer algo diferente do meu longa anterior, o Gata Velha Ainda Mia (2013), que tinha uma pegada bem mais soturna, era mais sombrio, mesmo. Queria fazer um contraponto àquele universo, e que falasse de amor. Mas tinha que ser de uma maneira nova. E como fazer uma comédia romântica que não fosse, necessariamente, uma comédia romântica? Que tivesse um diferencial? Foi isso que me guiou durante a construção de tudo.
O Gata Velha Ainda Mia já era um filme bem feminino, e o Todo Clichê do Amor segue a mesma linha. É mais fácil escrever para e falar sobre as mulheres?
Não sei se é mais fácil, mas com certeza é mais interessante. As mulheres são muito plurais e singulares ao mesmo tempo. Elas possuem algo que é muito delas, do universo que carregam. E quando a gente fala de amor, é quase impossível não ir para um ponto de vista feminino. Acho que a mulher tá, quase sempre, mais aberta para o outro, e para o amor, mesmo. Então, mesmo que invariavelmente, acabei resvalando nisso. Mas também tem o meu gosto pessoal: gosto de ver filmes sobre e com mulheres. Então isso acaba se refletindo no meu trabalho, não tem jeito (risos).
Vamos falar sobre os clichês. As comédias românticas são um terreno fértil para eles. A partir do momento em que você assume isso até no título, fica mais fácil lidar com eles?
Não sei. Pode ser que sim. Tem a grande questão de justamente brincar com esses clichês dos filmes românticos. O desafio era como fazer um filme novo a partir dessa desconstrução. E usando deles, bebendo da mesma fonte. Isso se reflete por tudo, até no uso de frases marcantes, por exemplo. E também em alguns comportamentos, na trilha sonora, que às vezes é muito clássica, e logo em seguida surge mais açucarada. A missão era descobrir como fazer essa maionese funcionar, sem desandar. Esse era o exercício. Não sei se consegui ou não, mas ao menos foi o que a gente se propôs. Fazer um filme novo a partir de clichês conhecidos do cinema, literatura, telenovelas, radionovelas, enfim.
Todo Clichê do Amor tem sua trama composta por três histórias em paralelo. Tinham outras ideias que você quis incluir e acabou não conseguindo?
Até que não. Na verdade, sempre foram essas três histórias, mais aquela da abertura, com o João Baldasserini, no set do filme pornô. E essa, ainda, no final você descobre que se liga a uma outra. A brincadeira era sobre pessoas que falam e que não falam, que estão ali e nos observam, mas sem coragem para se aproximar, de amar. É difícil, mesmo, falar sobre o amor de uma maneira nova. Foi um desafio constante abordar esse tema, ainda mais dentro de uma ficção. Fazer um filme com momentos engraçados, mas sem ser uma comédia romântica convencional.
Uma questão que parece ser importante são os sentidos. Uma personagem não escuta, a outra é cega, uma se comunica por sinais. Por que você decidiu agregar esses elementos à trama?
Tem uma coisa que me agrada muito que é você falar e trazer pessoas de verdade para as suas histórias. O filme começa como um grande estereótipo, e você vai quebrando essa ideia aos poucos, e a partir disso vendo seres humanos. Essa é a nossa realidade. As pessoas têm problemas, tem deficiências, algumas são amadas e são felizes, outras não. Estamos falando dessas pessoas. Queria que esses personagens servissem também como uma metáfora das nossas dificuldades de se relacionar, de ouvir o outro, de ver, de sentir, de falar, de se abrir, de pedir desculpas, de voltar atrás numa relação. A intenção era humanizar, criar uma identidade. Para que a pessoa que assista possa pensar: “puxa, também tenho uma relação que não é perfeita, mas talvez se fizer isso ou aquilo a situação melhore”. Tudo é sempre muito romanceado, muito romantizado, e as pessoas não são perfeitas, lindas, honestas e puras como nesses filmes. Podemos até sonhar com essas histórias, mas não é verdadeiro. Queria mostrar que a mocinha do filme também tem seus problemas. Nessa história a gente pode quebrar esses paradigmas.
Além de escrever e dirigir, você também atua. Chegaste a cogitar a possibilidade de interpretar outros personagens, ou desde o começo seria o protagonista?
Na verdade, nem me via muito no filme como ator. Mas, dentre todos os que estavam disponíveis, e tendo que fazer um equilíbrio entre o elenco com quem já tinha um certo, esse me pareceu ser o mais coerente. E por vários motivos: pelo tipo físico, pelo tempo que exigiriam as filmagens, com a agenda de todas as outras pessoas. Seria mais fácil, portanto. Brinco que me escalei para ser o protagonista porque sou o meu próprio pistolão, eu mesmo acreditei em mim. Se dava para fazer ou não, pouco importava. Fui lá e fiz (risos). E eu e a Debora já tínhamos uma afinidade, então isso também facilitou. Já havíamos feito dois trabalhos juntos, com a Gilda também, com a Marjorie havia feito um espetáculo de teatro, com o João a mesma coisa. A vantagem de ser ator, numa hora como essas, é que você tem muitos amigos no meio, talentosos, pessoas que você admira e pode acessá-las mais rapidamente.
Há filmes em que é perceptível o esforço dos atores para que o público ache graça, e outros em que fica claro que o elenco está se divertindo mais do que os espectadores. Como é buscar esse equilíbrio?
O grande foco da atuação, a minha primeira recomendação para todo mundo no set, foi que não fizessem graça. O Daniel Gaggini, nosso produtor, é que ficava preocupado e dizia: “mas desse jeito isso nunca vai ser uma comédia” (risos). Realmente, essa não é uma comédia de dar gargalhadas. A intenção era quebrar com esses padrões. Era fazer de verdade, tentando humanizar ao máximo cada um desses conflitos. O filme já brinca com essa coisa meio mágica, com os figurinos, com a luz. Por isso, era preciso que todos fizessem da forma mais natural possível, para que a gente acredite naquilo que estão vivendo. Caso contrário, tudo viraria um grande carnaval. E não teria problema algum se fosse só isso, mas a minha intenção, com esse filme, era revelar outras camadas, não ficar só nessa superfície. E acho que assim você consegue vê-las melhor. Por isso que prefiro chamar o filme de romance, e não de comédia romântica. Ele fala sobre afeto. Nem tudo dá certo, nem tudo dá errado. É meio como na vida.
À frente do elenco estão três grandes atrizes: Debora Falabella, Marjorie Estiano e Maria Luísa Mendonça. Como foi trabalhar com elas?
Quando comecei a transformar essa história em um roteiro, na mesma época estava trabalhando com a Maria Luísa Mendonça no teatro. E também já a tinha visto em outras coisas ótimas, sabia bem do talento dela. Por isso que, quando pensei na personagem que ficou com ela, tinha certeza que a faria de maneira brilhante – como, de fato, fez. Ela frequenta bem esse lugar da descompostura, da loucura, da mulher que toma remédios. Ela é muito criativa. Ao mesmo tempo, também tem um lado muito racional, o que é legal. Só que as dosagens são diferentes. A Maria Luísa tem um pote de loucura e criatividade, e alguns mililitros dessa coisa mais racional.
Se é possível imaginar a Maria Luísa nessa situação em que a vemos no filme, com a Marjorie o desafio deve ter sido bem maior, não?
A Marjorie é uma atriz que se entrega por completo, ainda que venha sempre preparadíssima. Ela chega ao set muito estudada, absolutamente consciente das coisas que quer, do que pretende me convencer e das coisas que pode ser convencida. Quando leu o roteiro, o que pedi é que fizesse algo que não fosse o óbvio. Porque a situação em que estaria já é muito engraçada, não precisa forçar. Ela traz um tempero, agregando coisas que são deliciosas de ver. A personagem acaba sendo mais divertida por causa do lugar em que se encontra. Sei que a Marjorie é capaz de fazer humor muito bem, porque a conheço não é de hoje. Ela é, naturalmente, muito engraçada, ainda mais se a colocamos em um lugar estranho. Sabia que seria incrível tê-la nesse papel, só não tinha certeza se aceitaria. E o melhor foi que topou na hora.
E o filé você reservou para a Débora?
Não sei bem se foi o filé. Tem mais cara de carne de pescoço (risos). Nós já havíamos trabalhado juntos em outros curtas, então, coitada, sobrou pra ela. Afinal, nesse filme ela teve que atuar ao lado do cara – eu, no caso – que, ao mesmo tempo em que está atuando, tinha que fazer diversas outras coisas. Nem sempre tive a disponibilidade para dar a atenção que cada cena necessitava. Ela tem essa generosidade, e é tão potente em cena, que é encantador só ficar assistindo ao trabalho dela. Vê-la em cena é um grande prazer, e ela tá incrível no filme. Uma graça. A gente se apaixona sem nenhum esforço. Ela sabe te entregar isso. Ainda que, depois, fosse preciso quebrar um pouco essa magia. Ela quis participar do filme, e para mim foi uma baita honra. Quando disse o que tava fazendo, me perguntou: “quero fazer, tem alguma coisa pra mim?”. E respondi na hora: “vai ter”. Depois é que fui ver o que seria.
Mais de um diretor já me disse que “filme não fica pronto, filme se abandona”. Para você, o Todo Clichê do Amor está como imaginou, ou tem coisas que gostaria de ter feito diferente?
Ah, a gente sempre lamenta. Tem muita coisa que, olhando agora, talvez tivesse ido por outro caminho. Mas também não sou infeliz. Trabalho com o que tenho, com o que está ao meu alcance naquele momento. A grande questão é você fazer ou não fazer. Não fazer é ficar esperando ter as condições ideias do seu sonho, e demorar seis, sete, dez anos para ter um filme, ou abraçar a causa e ter consciência de que você também é falível. Essa é a questão. Sei que o filme não é perfeito, tem muitos problemas, coisas que vejo, detalhes técnicos, mas tudo tem a ver com o jeito que foi feito e com a maneira que deu para fazer. Ou seja, é o melhor que consegui fazer dentro daquilo que tinha. A gente aceitar isso é dolorido, mas necessário. E o filme existe, está aí, e é melhor do que qualquer outro que não existe.
E depois do Todo Clichê do Amor, há algum outro projeto encaminhado?
Devo fazer meu próximo filme ainda neste ano, no próximo semestre. Vai se chamar Reencontro. Quanto ao elenco, com certeza vou consultar todos os meus amigos e vou chamar aqueles que tiverem agenda disponível. Acho que vai ser bem bonito. Tem uma pegada mais realista, e fala sobre as confecções clandestinas bolivianas aqui no Brasil. Esse é o tema central. E será a partir do olhar de uma mulher, que nasceu em Capão Redondo e acaba caindo nessa rede, numa dessas oficinas. Os amigos dela é que irão ajudá-la a sair dessa cilada. É um drama. Devo filmar em outubro ou novembro, e no ano que vem deve ser lançado.
(Entrevista feita ao vivo em São Paulo em abril de 2018)
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