O gaúcho Boca Migotto vem demonstrando através de sua obra, especialmente no que tange ao curta-metragem, um apreço genuíno e afetivo pelos elementos intrínsecos às suas raízes de descendente de italiano. Nascido na cidade de Carlos Barbosa, há muito radicado na capital Porto Alegre – em breve de mudança para Paris –, Boca realizou alguns filmes que dão conta de uma arqueologia que inevitavelmente o aproxima sentimentalmente dos seus. Com Pra Ficar na História, produção da Epifania Filmes e Teimoso Filmes com GloboNews e Globo Filmes, ele retrata um homem cuja paixão pelas coisas da serra gaúcha é análoga a dele. Embora o maior sucesso do cineasta seja o longa-metragem Filme Sobre um Bom Fim (2015) que, além de boa bilheteria, concorreu na mostra competitiva do É Tudo Verdade, o mais significativo festival de documentários da América Latina, é nas paisagens bucólicas dos arredores de sua terra natal que ele parece sentir-se totalmente à vontade, ou, ao menos, mais conectado com aquilo que lhe fala além do intelecto. Boca nos atendeu gentilmente para este Papo de Cinema por telefone, entre um compromisso e outro. Confira o bate-papo exclusivo a seguir.
Como você conheceu o Luiz Henrique Fitarelli, bem como o trabalho que ele realiza em Garibaldi?
Sou daquela região, faço constantemente filmes por lá, então não foi difícil conhecer o Fitarelli, porque ele é notório naquelas bandas. E com a realização do Decamerão: A Comédia do Sexo (2009), a série da Rede Globo dirigida pelo Jorge Furtado, ele ficou ainda mais conhecido, pois contribuiu com a produção. Eu tinha outro projeto, no qual o Fitarelli seria coadjuvante, mas que não deu certo. Resolvi, então, apresentar uma nova ideia de curta-metragem para a RBS TV (emissora gaúcha), mas já pensando em transformar em longa-metragem. Até por isso filmamos bem mais do que precisava para o curta que acabou sendo exibido na TV e ganhando prêmios. Somente depois desse êxito mostrei o projeto do longa-metragem para a Globo e tivemos como fazer o Pra Ficar na História.
O filme fala de raízes e memória. Você se sentiu, até como filho da região, impelido a, de certa maneira, registrar a paixão do Fitarelli para contribuir com esse esforço?
Esse homem, num ambiente extremamente conservador, e de idade mais avançada que a minha, acalenta o sonho de construir um museu. Se isso é muito difícil em condições favoráveis, imagina para um cara que é veterinário no interior do Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo em que ele é um sujeito de posicionamento político mais à direita, que vive criticando a esquerda, acaba investindo em cultura, algo alinhado ao progressismo associado à esquerda. Gostaria de ter discutido mais profundamente essa contradição. Na região, o pensamento vigente vai ao encontro da ideia de ganhar dinheiro, construir imóveis, mas são pouco fomentadas práticas como ler um livro, ir a uma peça de teatro ou assistir a um filme. Como cineasta, me esforço ao máximo para captar recursos nessa terra em que as pessoas não pensam duas vezes antes de pôr abaixo a casa do nono para erguer moradias modernas.
Comida, trabalho e a família, pilares da cultura da serra gaúcha, sobressaem no seu filme. Era, justamente, a ideia inicial partir desses três elementos?
Não tinha como fugir disso. Da comida, porque as decisões acontecem ao redor da mesa na cultura italiana. E eu também queria mostrar que há diferenças entre a culinária italiana daqui e a da Itália, mesmo. A concepção do filme foi toda feita em cima da ideia de espelhos inexatos. Inclusive, por isso trabalhamos muito com reflexos. Tentamos trazer a própria tela dupla para estabelecer esse contraponto entre o norte da Itália e o Sul do Brasil. Claro, algumas coisas são parecidas, mas outras são bem diferentes. Por exemplo, a forma de lidar com a preservação é bem distinta, embora o que salve o patrimônio cultural, lá e aqui, é o desenvolvimento do turismo. Sobre a família, gostaria que tivesse entrado muito mais. Mas a primogênita não se mostrou muito à vontade diante das câmeras, ela fez porque era para o pai dela. A esposa também não se sentia confortável. Quem aparece mais é a caçula. A respeito do trabalho, foi isso que fez o Fitarelli erguer aquilo tudo. Inclusive na pré-estreia que tivemos em Garibaldi, ele pegou o microfone e involuntariamente, mesmo porque tomado de nervosismo, disse que não era ator, era trabalhador (risos), como se os atores não fossem trabalhadores. Ele, inclusive, remediou depois, quando se deu conta, falando que fazer um filme era difícil. Mas isso reflete bem um pensamento da região, de que trabalhador é quem bate ponto.
O Bruno Polidoro, diretor de fotografia, teu colaborador contumaz, valoriza a beleza da região. Para você, passava por isso a evocação e a valorização desse passado?
Eu queria que os primeiros três quartos do filme fossem uma coisa romântica, bela, o mais próximo possível de uma ficção sobre o Fitarelli. Li uma crítica que disse que ele não era objeto do filme, mas sujeito. Isso me deixou muito contente. Fitarelli escolheu com quem nos encontraríamos, e são pessoas que mais o escutam do que falam. A única personagem que introduzo é a Loraine, porque comecei a perceber que os interlocutores dele não agregariam elementos de desconstrução, não permitiriam conflitos. A ideia não era fazer um documentário ufanista sobre imigração. O espectador mais atento pode se chatear no começo, pelos procedimentos clichê que a gente utiliza deliberadamente. E isso é importante para que seja percebida a quebra que acontece depois, essa desconstrução que ocorre gradualmente, como se descascássemos uma cebola. Pelo menos, era essa a intenção. Queria ter desconstruído mais, porém existe uma ética a ser respeitada, em relação ao personagem e à região. Mas tento questionar na medida do possível. Trabalho com o Bruno Polidoro há muito tempo, então já temos uma sintonia, algo que também rolou com a Gabriela Bervian, responsável pelo som, que igualmente expressa essa contradição. E a música do Arthur de Faria dialoga bem com a tragicomédia do imigrante.
Em que momento você decidiu ir à frente das câmeras, inclusive fornecendo dados pessoais que o aproximam ainda mais do Fitarelli, bem como de todo descendente de imigrante?
Não lembro bem o momento exato em que decidi ir à frente das câmeras, mas achei necessário para estabelecer um paralelo entre o meu trabalho e o do Fitarelli. Sempre quis fazer esse filme como aquele que encerra um ciclo de temático sobre a região. Posso vir a trabalhar novamente com isso, claro, mas não é mais o objetivo principal registrar aquela história, aquelas memórias. Queria, então, fazer do Pra Ficar na História uma espécie de compilação de tudo, aprofundando o que nos curtas não dava. Assim como o Fitarelli faz o que faz por conta dos avós, desse legado, tenho quase certeza de que faço isso, de preservar a história dos imigrantes por meio do cinema, por causa do meu pai, que gostava de contar histórias, de me levar para conhecer os lugares. Tanto que aquelas imagens dele fiz com uma VHS, quando estava na faculdade, em 1996 ou 1997, num natal passado em Carlos Barbosa. Vi meu pai entrevistando aquele senhor, como faço nos documentários, e até me dirigindo. Achei aquilo excelente. Desde o início, queria me pôr no filme através dos meus curtas. Mas me inseri, na verdade, para discutir essa discrepância da região, que dá conta de valorizar o fato de ser descendente de italiano, de ter passaporte europeu, de pretensamente entender de vinho, mas, ao mesmo tempo, de jogar fora as fotos antigas, de não dar valor ao dialeto falado pelo avô, de demolir as casas antigas, porque representa a vergonha do passado pobre ou por pura oportunidade imobiliária. Foi um esforço danado aparecer, pois não gosto muito de surgir na frente das câmeras.
A visão da historiadora Loraine quebra essa celebração com uma visão distinta daqueles objetos, da história por trás deles. Por que colocar ela no filme?
A Loraine é uma pessoa que admiro bastante. Conheci ela quando fiz o Rio das Antas, em 2008, aliás, o primeiro filme que realizei na região. É uma pessoa extremamente inteligente, irônica e comunista de carteirinha. Foi a primeira mulher a se separar em Caxias do Sul. Ela tem um discurso muito crítico. Pensei de cara nela para ser a pessoa que ajudaria a desconstruir a história. Não precisei nem dirigi-la. Ela é fundamental. O que nos falta é reportar-se ao passado com um olhar mais crítico, parando com esse oba oba da Tarantela, de achar que a Bella Ciao é uma música festiva, quando, na verdade, é uma canção de resistência ao fascismo. A Loraine entra no filme com esse objetivo, que, aliás, cumpre muito bem. Obviamente ela provocou muito mais o Fitarelli que, por sua vez, não gostou. E concordo com o ponto de vista dela acerca dos objetos carregarem uma energia de dor daqueles imigrantes. Mas ele não está errado em preservar aquilo, pois apenas assim começaremos a entender melhor o passado. Os dois estão certos e errados. E uma coisa que acho importante é o fato de, ao longo do filme, o Fitarelli permanecer calado apenas um par de vezes, exatamente diante de duas mulheres.
(Entrevista concedida por telefone, numa ponte Rio de Janeiro/Porto Alegre, em março de 2018)
Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)
- Saga :: Venom - 13 de dezembro de 2024
- Bagagem de Risco - 13 de dezembro de 2024
- GIFF 2024 :: Confira os vencedores do 3º Festival Internacional de Cinema de Goiânia - 13 de dezembro de 2024
Deixe um comentário