De Recife, Pernambuco, Heitor Dhalia tem se preparado para conquistar o mundo. Depois de alguns curtas, chegou aos cinemas como realizador do tenso Nina (2004), baseado num texto de Dostoievski, e com a comédia de humor negro O Cheiro do Ralo (2006), inspirada na novela de Lourenço Mutarelli. O caráter internacional de seu cinema começou a ficar mais evidente no trabalho seguinte, o drama À Deriva (2009), filmado no Brasil e estrelado pelo francês Vincent Cassel e pela norte-americana Camilla Belle. Foi o que faltava para colocar o pé de vez em Hollywood. Porém, o malfadado 12 Horas (2012), que contou com Amanda Seyfried como protagonista, o fez olhar de novo para as opções ao seu alcance, refazendo cálculos e expectativas. E depois do épico nacional Serra Pelada (2013), ele deu literalmente a volta no planeta com o documentário On Yoga: Arquitetura da Paz (2017), resultado dos seus encontros e conversas com o fotógrafo Michael O’Neill. E foi justamente sobre sua estreia neste formato que o cineasta conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!

 

Olá, Heitor. On Yoga: Arquitetura da Paz é o seu primeiro documentário. O que lhe atrai nesse gênero e nesse tema em particular?
Na verdade, foi meio por acaso. Nunca havia pensado em fazer um documentário, preciso confessar, por mais que goste de assisti-los, por exemplo. Sou um consumidor do gênero, assisto a bastante filmes desse tipo, mas nunca havia pensado em fazer um. Simplesmente achava que não era minha praia. E olha só, agora estou aqui, lançando um. E quer saber? Tenho até vontade de fazer outros, porque gostei muito desse, e o processo de realização foi muito prazeroso. Mas foi por acaso.

Como On Yoga entrou na sua vida, então?
Estava passando férias em Alagoas, junto com a minha esposa, quando conheci um produtor de Pernambuco, que – olha só a coincidência – vem a ser cunhado desse fotógrafo, o Michael O’Neill. Nesse primeiro momento tivemos uma longa conversa, me contou toda a história dele, dos quarenta anos de carreira nos EUA e tal. Nada havia ficado definido, nem sugestão, foi apenas um bate-papo, mesmo. Achei OK, mas no ano seguinte, quando voltei lá, no dia 30 de dezembro para passarmos a virada do ano, o reencontrei. E, dessa vez, já veio com o livro em mãos – esse livro, o On Yoga – e me perguntou se não queria fazer um documentário a respeito. Passei a noite lendo, na véspera do réveillon, e no outro dia fui conversar com o Michael. Foi quando, finalmente, nos conhecemos. Haviam ali duas coisas que me interessavam: era algo extremamente estético, visual, e também a possibilidade de perguntar a esses gurus sobre o mundo de hoje, discutir temas atuais, entende? Queria saber o que pensam a respeito da morte, da vida, da sociedade, dos problemas de hoje. São pensadores, afinal, e seria instigante descobrir como abordariam temas do mundo moderno. Como, enfim, uma tradição milenar se aplicaria hoje em dia: religião, pensamento, condutas morais. Era importante dar voz a essas doutrinas. E, assim, me propus a reconstruir essa viagem que tinha sido só dele, mas agora não só em imagens, mas também em som e movimento.

 

On Yoga é um reflexo do seu relacionamento com o fotografo Michael O’Neill. Gostaria que você falasse um pouco dessa parceria.
O Michael, como foi ele que passou dez anos fazendo o livro, serviu de base para a gente. Essa foi uma viagem iniciática no mundo da yoga, pois foi a partir de uma doença que ele teve – e da qual já está curado – que resolveu prestar essa homenagem. O projeto se passa, basicamente, entre a Índia e os EUA. Virou um projeto pessoal dele, com o propósito de fotografar esses mestres. Para isso, ficou dez anos envolvido. E foi, mais ou menos, a pré-produção do filme, pois já tinha tudo pronto: os contatos, as pessoas, com quem falar e como se comunicar com elas. Não teria conseguido levantar esse documentário tão rápido sem isso. Meu trabalho foi mais o de ouvir. Comecei a fazer yoga também, em paralelo, para saber como abordar o tema. Fiz o documentário a partir dos princípios da yoga. É uma questão de deixar as coisas acontecerem. Tem que ter uma qualidade de escuta muito grande. Sem emitir muita opinião. Queria que fosse abstrato, sensorial, que soasse como um mantra. Uma jornada imersiva, quase hipnótica. Foi um roteiro muito aberto, construído depois na montagem, enquanto íamos elaborando uma narrativa.

 

Bom, deixa te perguntar: você é um adepto da yoga? Desde antes do filme?
Não, como disse, a yoga entrou na minha vida por acaso. Nunca havia praticado antes, por exemplo. Mas, a partir do momento em que comecei a me envolver com a realização deste documentário, percebi que precisaria entender este universo. Hoje faço, há mais de dois anos. É um processo, como tudo na vida. Virei praticamente e adoro. Nada radical, é claro, mas é uma atividade que se encaixou na minha vida. Faço em casa, em qualquer tempo livre. Foi fácil, não é preciso uma mudança tão grande. São três ou quatro vezes por semana, e a gente já sente a diferença. Antes, tinha só interesse. Fazia academia, que é um saco (risos). Então, foi também um alívio trazer a yoga para a minha vida.

Equipe do filme On Yoga: Arquitetura da Paz

E o que fazer On Yoga: Arquitetura da Paz mudou na forma como você vê o mundo?
Olha, foi uma viagem bem iniciativa. Você se coloca em cheque em vários valores. E esse não é um daqueles papos pra vender filme, sabe? Hoje estou vivendo em São Paulo, continuo com a mesma vida que tinha antes, nesse sentido nada mudou. Mas entendi que tinha que dar mais importância a algumas coisas. Tanto no âmbito pessoal, como também no profissional. Uma questão é que agora me vejo focado mais em meu trabalho autoral, por exemplo. Até o meu envolvimento com a publicidade, que havia parado, para ficar só no cinema, tenho aos poucos retomado. O yoga te ajuda a achar, não uma pureza, mas um apuro de conceito, você fica com mais foco na vida, e passa a entender melhor o que está ao seu redor. E não apenas o significado da vida, estas questões grandiosas, mas até a nossa relação com o dinheiro, com o que realmente precisamos para viver. Me ajudou a ser mais calmo com o mundo. Não vamos resolver tudo, afinal. Mas, claro, tem que acreditar um pouco. Não virei um super praticamente, mas tive alguns ganhos importantes. Foi bacana. Houve um ponto de ruptura, e desde então passei a prestar atenção ao que importa na vida.

 

O filme foi feito quase que inteiramente na Índia e nos Estados Unidos. Por que nestes dois países?
Na verdade, como se tratava da jornada do Michael pela yoga, fomos refazer o trajeto que ele havia feito de verdade. Pra começar, o filme tinha que ser em falado em inglês, pois o protagonista era americano. E foi todo feito com investimento próprio, sem produtores externos, de grandes companhias, e com isso foi possível nos concentrar nos pontos mais essenciais. Fomos até os principais gurus e pensadores, e estes estão nestes dois países. Há várias linhas de pensamento no yoga. A Índia, porque é o berço. E os Estados Unidos, por incrível que pareça, é o lugar que melhor recebe esse modo de vida, mesmo com toda aquela loucura. A yoga foi a grande influenciadora da contracultura norte-americana, por exemplo. É um movimento que veio da Índia, e teve influência direta nos hippies, mas começou muito antes, lá nos anos 1920, 1930. Criaram sementes para que nascesse o movimento dos anos 1960 e 1970. O yoga foi muito influente para a formação da sociedade norte-americana, mais do que na Europa, para se ter uma ideia. Quer dizer, Londres também teve seus momentos, mas esses dois países tinham uma definição sobre isso, até na nossa cultura de hoje. Alguns princípios que nem percebemos estão lá, mas só estudando a fundo é que descobrimos as ligações. E como não tínhamos muita grana, era preciso escolher.

Pré-estreia do filme On Yoga: Arquitetura da Paz

Essa não é a sua primeira produção internacional, mas o que ela lhe apresentou como maior desafio em termos de realização?
Essa é uma produção internacional, mas quem produziu foi a gente. Os produtores são todos brasileiros. O tema é que é internacional, e como foi todo falado em inglês, passa mesmo essa ideia. Mas é legal, pois reunimos pessoas com a qualidade certa pra fazer o filme que estávamos buscando. Agora, para mim, não tem diferença nenhuma ser um diretor brasileiro ou de qualquer outro lugar. Estamos numa fase gloriosa. O Brasil vive um momento muito forte. Estou muito feliz em poder fazer parte disso. Ainda mais nesse momento de tanta intolerância. E esse documentário vai contra tudo isso. O que ele prega? A importância em servir ao outro. Como precisamos ouvir, o exemplo do faça ao outro aquilo que gostaria que fizessem com você. Hoje em dia a coisa está brutal. A realidade é assustadora. Cada vez mais, precisamos nos posicionar, e fazer filmes que retratam esse momento.

 

Um dos elementos que mais chamam atenção em On Yoga é sua fotografia, que é belíssima. Era um objetivo refletir a visão de Michael O’Neill através do cinema?
A gente tinha essa ambição, com certeza. Queríamos estar à altura do trabalho do Michael, e estender o trabalho dele através das ferramentas que só o cinema oferece. Tanto no conteúdo, com as entrevistas, como também nos princípios estéticos. Por isso fomos investigar os conceitos, mas de uma forma sensorial, quase abstrata mesmo. Estávamos, enfim, reproduzindo o trabalho do Michael. E acho que deu certo, ao menos é o que temos percebido. Por exemplo, estamos selecionados para o Camerimage, na Polônia, que é o festival mais importante do mundo neste sentido, é como se fosse o Oscar da Fotografia. E isso é muito legal, pois tivemos uma equipe minúscula. Era apenas o fotógrafo, o assistente de câmera, eu e o produtor. Então, tudo precisou ser feito com muito apuro, com um olhar delicado, mas extremamente talentoso. Filmar nas horas mágicas, ou na Índia, foram decisões que nos ajudaram muito, pois já há, naturalmente, uma beleza visual muito forte. Fomos trabalhando conceitos de fotografia em função dessa busca de traduzir o universo da yoga, que é uma religação, você em contato com algo acima, um tipo de espiritualidade. Estabelecendo uma conexão. Queríamos buscar essa transcendência nas imagens. Que soasse como um mantra, com imagens poéticas, porém não óbvias. Buscando essa desconstrução narrativa.

 

Você falou que tem vontade de fazer outros documentários. Já pode adiantar algo sobre seus próximos projetos?
Sim, tenho vontade, mas não há nada certo neste sentido. Um dia, quem sabe? Agora, de confirmado, já tenho dois novos filmes. Um, aliás, já está até filmado, só falta finalizar. Ele vai se chamar Tungstênio, foi rodado na Bahia e é baseado nos quadrinhos do Marcelo Quintanilha. Tá pronto, praticamente, mas deve ser lançado só no começo do ano que vem, é possível que a gente tente ir pra Cannes, vamos ver se vai dar tempo. E estou filmando um outro, um segundo filme, do qual participo como diretor, sem me envolver como roteirista ou produtor. É sobre temas muito urgentes, como o abuso de poder, o feminismo, o lugar de fala. Tudo muito contemporâneo, mas numa concepção mais teatral, quase como um espaço de criação, em um embate do desejo com a ética. Muito radical, imagino que será bem polêmico. Cada filme tem seu momento certo pra nascer, e é preciso respeitar esse processo.

Heitor Dhalia e Michael O’Neill praticando yoga

Após passar pelo Festival do Rio e pela Mostra de SP, quais os próximos passos de On Yoga: Arquitetura da Paz?
Também estivemos no Festival de Londres, agora tá indo pra Polônia, mais ou menos na mesma época em que estamos lançamos no Brasil. Depois vamos seguir, levar para o máximo de lugares possíveis. Foram super legais estas exibições no Rio e na Mostra, a recepção foi maravilhosa em todos os lugares. As pessoas estavam precisando ouvir uma coisa positiva nesse momento. O filme é denso, tem uma construção filosófica, profunda. Com muita gente inteligente em cena, autores de best-sellers norte-americanos, gurus indianos. É um filme com bastante conteúdo. Mas as pessoas se tocam, as reações são muito emocionais. Foi um filme que fiz com total despretensão. Sem expectativas além de viver a experiência, e foi muito gratificante.

(Entrevista feita por telefone direto de São Paulo em novembro de 2017)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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