Após um trabalho hercúleo que durou sete anos, o filme O Tempo e o Vento finalmente estreia no próximo dia 20 de setembro no Rio Grande do Sul, data que marca os 178 anos da Revolução Farroupilha, e no dia 27 do mesmo mês no restante do país. Nesta quarta-feira, o diretor Jayme Monjardim e parte do elenco, incluindo Thiago Lacerda e Cleo Pires, conversaram com a imprensa sobre o longa baseado na obra de Erico Verissimo.

Se de início Jayme admitiu que sempre pensou em Thiago para interpretar o Capitão Rodrigo Cambará, o ator não quis deixar dúvidas:

Nasci para fazer este papel – declarou com a maior tranquilidade.

E Thiago está mesmo muito à vontade em cena. Como visto na sessão dedicada à imprensa no último dia 17, o ator carioca captou todos os sinais do personagem com uma nitidez cristalina. Sem esforço, apresenta toda miríade psicológica da figura criada por Erico, incluindo os valores caudilhescos e machistas que caracterizavam o ideal de hombridade vigente na Província de São Pedro até fins do século XIX, além do caráter irreverente, do perfil sedutor e do conflito pessoal de um homem que amava a guerra, mas que buscava sossego para estabelecer casa e família. Sem dúvida, Thiago é um dos pontos altos do filme.

Coletiva de imprensa; Fotos: Cristiano Aquino

Porém, se foi fácil encontrar o ator ideal para desempenhar o papel da figura masculina mais importante do épico, verter para o cinema o livro O Continente – primeiro e mais conhecido volume da trilogia O Tempo e o Vento – foi algo bastante complicado. Os escritores Letícia Wierzchowski e Tabajara Ruas tiveram muito trabalho para encontrar o tom ideal do roteiro a fim de torná-lo uma obra independente, livre do texto original.

Foram quatro anos e muitas versões. A 27ª foi filmada. Um amigo me disse: “Vocês têm medo de mexer com Erico, mas vocês não estão fazendo uma obra literária, e sim uma versão cinematográfica” – disse Jayme.

O cineasta percebeu que o melhor caminho seria dar uma visão mais feminina ao roteiro. Assim, pediu que Letícia tomasse coragem para reimaginar a obra do autor gaúcho. Juntos, perceberam que uma boa alternativa era estabelecer o amor entre Bibiana (interpretada por Fernanda Montenegro e Marjorie Estiano) e Capitão Rodrigo como eixo principal do filme.

Tendo em vista a importância do romance para o desenvolvimento do longa, Thiago contou que Fernanda foi determinante para balizar o relacionamento entre os dois personagens.

Ela disse que precisávamos construir uma cumplicidade que não tínhamos. Construímos os personagens juntos de uma forma muito bonita. Ela é um espetáculo da natureza. E uma curiosidade que pouca gente sabe: ela dormiu no meu peito durante um momento de ajuste de luz. E, na cena em que ela está deitada comigo, está mesmo dormindo. Eu jamais acordaria Fernanda! De repente, dormi também. Foi Jayme quem nos acordou.

Na trama, um Capitão Rodrigo jovem visita Bibiana já idosa no sobrado dos Cambarás, motivo pelo qual ela relembra toda a trajetória da família, repleta de glórias e tragédias. Há diversas cenas de afetividade entre os dois, filmadas com muita elegância e sem melodrama.

Também não há drama excessivo na representação de Ana Terra feita por Cleo Pires. Embora a personagem transite com frequência entre a força e a obstinação que marcam a avó de Bibiana, Cléo exibe a fragilidade contida na figura, evidente em seus vários silêncios, típicos de uma conduta instaurada pela hierarquia familiar da época.

Diferentemente de Thiago, Cleo demorou a aceitar o papel que foi de sua mãe, Glória Pires, na minissérie dirigida por Paulo José e exibida em 1985 na TV Globo, pois via muito sofrimento não apenas em Ana Terra, mas também em Glória.

A vi atuando quando eu era adolescente. Relutei em aceitar o papel porque era difícil ver minha mãe sofrendo naquela época. Eu não diferenciava atriz e personagem. Mesmo sendo atriz hoje, ainda é algo emocional. Então quando chegou o convite eu rejeitei. Não gostava da obra. Mas Jayme me convenceu. Li o roteiro e fiquei louca. História e personagem são maravilhosas.

 

Paisagens e fotografia

Em sua monumental obra, Erico Verissimo retrata a formação histórica do Rio Grande do Sul e do Brasil em mais de duas mil páginas (leia mais sobre isso abaixo). Se em muitas delas as paisagens do interior gaúcho são como verdadeiros personagens, no filme os cenários naturais ganham uma dimensão grandiosa.

Jayme comemorou o fato de ter contado com a experiência do diretor de fotografia Affonso Beato, que trabalhou em mais de 60 filmes e séries de TV, como Carne Trêmula (1997) e Tudo sobre Minha Mãe (1999), de Pedro Almodóvar, A Rainha (2006), de Stephen Frears, e a minissérie da Rede Globo Maysa – Quando Fala o Coração (2009).

Qualquer diretor aprende muito com ele. Ainda mais eu, que estou apenas começando no cinema. Com ele, pude trabalhar com a câmera F65, com resolução 4K. É o primeiro filme feito no mundo com essa alta tecnologia. Oblivion, com Tom Cruise, foi feito em 4K, mas não foi finalizado nesta resolução. Isso é inédito. Affonso está entre os 20 melhores fotógrafos do mundo, e essa tecnologia no filme é um mérito dele.

 

 

Pré-estreia

Além de Fernanda Montenegro, Thiago Lacerda, Cleo Pires e Marjorie Estiano, o elenco conta com Paulo Goulart, José de Abreu, Vanessa Loes, Cesar Troncoso, Leonardo Machado, Zé Adão Barbosa, Cris Pereira, Janaína Kremer e José Henrique Ligabue, entre outros.

Orçado em R$ 13 milhões, o filme teve cenas rodadas em Bagé, onde foi construída a vila cenográfica de Santa Fé, e em Pelotas. Ao todo, foram mais de dois mil figurantes. A sessão de pré-estreia para convidados, com a presença de Jayme e do elenco principal (exceto Fernanda e Marjorie), será realizada hoje nos cinemas do GNC Praia de Belas em Porto Alegre.

Entre 300 e 350 salas brasileiras devem receber cópias do longa, conforme a produtora Rita Buzzar, da Nexus Cinema e Vídeo, responsável pelo projeto em parceria com a Globo Filmes e a gaúcha Panda Filmes. De acordo com Jayme, O Tempo e o Vento deverá ser lançado em DVD com sua versão definitiva e poderá ganhar transmissão na TV.

 

Relembre a obra de Erico Verissimo

Em 2012, completou-se o cinquentenário da publicação do último volume de O Arquipélago, que encerra o épico criado por Erico no qual o autor relata ficcionalmente parte da formação histórica do Rio Grande do Sul e do Brasil através da passagem cíclica do tempo e por meio de dramas individuais que marcam várias gerações das famílias Terra, Cambará e Amaral.

Dividido em O Continente (lançado em 1949), O Retrato (1951) e O Arquipélago (1961), a obra neo-realista abrange dois séculos em 2,2 mil páginas, indo da ocupação do Continente de São Pedro em 1745 (região limite entre os Impérios Espanhol, com sede em Buenos Aires, e Português, com sede no Rio de Janeiro, e em permanente disputa pelas duas coroas ibéricas – leia mais aqui) até o fim do Estado Novo, em 1945.

No decorrer dos três livros que compõem O Tempo e o Vento, Erico apresenta as relações diretas entre os destinos dos personagens e alguns dos momentos decisivos da constituição do Sul e da própria nação brasileira. A partir de romances, dramas, tragédias, revoltas, revoluções e guerras, o autor criou um dos principais romances históricos já escritos no País, significando um passado heroico por meio de glória e decadência.

O Continente traça a origem da sociedade rio-grandense sob o controle de uma elite guerreira. Essa origem é forjada em lutas fronteiriças e revoluções diversas do meio do século XVIII e durante todo o século XIX. Testemunhamos a consolidação do poder dos estancieiros, a solidificação do núcleo familiar e o surgimento de clãs dominantes. Os personagens são protagonistas da História durante 150 anos. A trama desenrola-se entre a chegada de uma mulher grávida (mãe do índio Pedro Missioneiro, que terá um romance com Ana Terra) às Missões Jesuíticas, em 1745, até o cerco ao sobrado dos Cambarás, em 1895. É neste livro que Bibiana (neta de Ana Terra) se casa com o Capitão Rodrigo Cambará. O termo “continente” remete a uma ideia de “constituição”, “formação” ou “solidificação”.


O Retrato e O Arquipélago somados duram 50 anos. O Retrato, já nas primeiras décadas do século XX, registra embates entre os velhos oligarcas e os novos caudilhos ilustrados, a exemplo do Dr. Rodrigo Terra Cambará (bisneto de Bibiana e do Cap. Rodrigo), que havia deixado Santa Fé para estudar e volta um homem sofisticado que, aos poucos, reencontra seu “Eu” interiorano e pouco polido. Os personagens tem uma postura mais espectadora da História. Já O Arquipélago, palavra que remete à ideia de fragmentação, mostra a derrocada da família dirigente (Cambará), a crise política dos estancieiros gaúchos, e a emergência de novos grupos sociais, como alemães e italianos. Os personagens voltam a participar diretamente dos fatos históricos, contracenando com Getúlio Vargas, Osvaldo Aranha, Luís Carlos Prestes, já que parte da ação se passa no Rio de Janeiro.

O Tempo e o Vento acaba em 1945, com a queda de Getúlio, que representa o crepúsculo da dominação dos estancieiros gaúchos sobre o país.

Ao final, o personagem-escritor Floriano Cambará (que representa Erico) resgata a memória da família em forma de romance. As primeiras frases do livro de Floriano encerram O Tempo e o Vento da mesma forma como o próprio épico começou: “Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado“. Fechando um círculo sobre sua criação literária, Erico utiliza a metalinguagem para reforçar o fator cíclico do tempo que permeia toda a obra.

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é jornalista, doutorando em Comunicação e Informação. Pesquisador de cinema, semiótica da cultura e imaginário antropológico, atuou no Grupo RBS, no Portal Terra e na Editora Abril. É integrante da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul.
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