Diretora, roteirista… boxeadora! Elisa Mishto é uma multiartista e uma cidadã do mundo. Nascida na Itália, estudou na Inglaterra e hoje encontra-se situada na Alemanha, onde tem desenvolvido seus trabalhos mais recentes. Entre eles, está o drama feminino Garota Inflamável, que chegou aos cinemas em 2019, mas somente agora, três anos depois, graças à pandemia do Covid-19, está estreando no Brasil. Premiado no México e exibido em festivais ao redor do mundo, como o Tallinn Black Nights, na Estônia, Göteborg, na Suécia, e Chiostro dell’Incoronata, em Milão, esta é uma história sobre duas garotas em um ambiente nada aprazível: um hospital psiquiátrico. Uma é a paciente, outra é a que deveria cuidar dela. Mas a relação que se desenvolve entre elas vai muito além da condição clínica original. O Papo de Cinema conversou com a cineasta, em um bate-papo inédito e exclusivo, sobre a origem do projeto e suas intenções com essa trama. Confira!

 

Oi, Elisa. Prazer falar contigo. Como nasceu o filme Garota Inflamável?
Bom, vamos lá. Meu primeiro longa foi um documentário, e o filmei em um hospital psiquiátrico na Itália. Esse processo me ocupou mais ou menos por quatro anos, entre pesquisas e filmagens, e durante esse período colecionei diversas histórias e anedotas a respeito das pessoas que passavam por um lugar como esse. Estive envolvida com a atmosfera daquele lugar. Era algo que realmente me interessava. Tempos depois, quando fiz minha inscrição para uma escola de roteiristas em Londres, tive que escrever um primeiro rascunho de roteiro para um filme. Não sabia exatamente sobre o que gostaria de abordar. Mas, por estar vindo dessa experiência, surgiu de modo natural a decisão de situar a trama em uma instituição mental. Foi assim que tudo começou.

Elisa Mishto (de preto) com o elenco de “Garota Inflamável”

Você é italiana, mora na Alemanha, estudou na Inglaterra. Além disso, fiquei sabendo também que é videoartista, letrista e até promotora de boxe, confere?
(risos) Deixe-me explicar. Videoartista fez parte da minha formação, mas não é algo que faça hoje em dia. Era o que exercia antes de começar a fazer filmes. Costumava pensar, naquela época, que cinema era uma coisa que somente alguém muito importante poderia fazer, que não era para mim. Foi por isso que comecei com a videoarte. Mas aconteceu que não era muito boa nisso, preciso admitir. Logo, portanto, percebi que queria mesmo era me envolver com cinema. Então, para mim, foi como parte do processo, que precisei fazer durante um tempo até me dar conta do que realmente queria. E sobre o boxe, bem, o que posso dizer? É uma paixão que tenho. Treinei e participei de lutas por mais ou menos dez anos. Foi depois disso que comecei atuar na promoção das lutas e de eventos relacionados.

 

Como todas essas influências lhe ajudaram no processo de elaboração desse filme?
Com exceção do boxe, todas essas atividades estão, de um jeito de outro, relacionadas com o contar histórias. O boxe, claro, tem mais a ver com ter que lidar com aquela situação em particular. No final das contas, também é um tipo de narrativa. Para mim, tudo começa com a história. Sei que é algo que provavelmente todo mundo diz, mas é a pura verdade. Até hoje, escrevi todos os meus filmes. Roteiro e direção. Então, parte de um interesse genuíno pelo que vai ser dito. Sempre quero saber mais a respeito, pois estou fascinada. E é por isso que acabo escrevendo.

 

O título original é Stillstehen, ou seja, algo como Fique Parado. O que ele significa?
Ficar parado é como uma metáfora. A protagonista, afinal, está fazendo esse ‘manifesto do nada’, se recusa a tomar parte de uma forma ativa da nossa sociedade. Ela vem de uma família privilegiada e tem esse sentimento de que a sociedade é injusta. Não sabe muito bem como mudar essa situação, principalmente porque reconhece que não é uma das vítimas dessa injustiça. Então, por isso mesmo, não sabe qual é a sua responsabilidade nessa mudança. A maneira que encontra para lidar com isso é fazendo nada. Literalmente, tenta agir de forma contrária ao que se espera dela. Não tem amigos, não tem vontade de sair e se divertir, é uma figura asséptica. Ficar parada, portanto, diz muito sobre esse ‘manifesto do nada’.

Luisa-Celine Gaffron em cena de “Garota Inflamável”

E o que achou do nome brasileiro, Garota Inflamável?
Fiquei muito feliz quando soube. É assim não só no Brasil, mas alguns outros países também adotaram essa denominação. No México é algo parecido, se não me engano. Confesso que achei divertido. É diferente da maioria, que acabou optando pelo Stand Still. Gosto desse frescor que há em Garota Inflamável. É um ótimo nome. Fiquei pensando se eu mesma não deveria ter escolhido esse título para o batismo original.

 

Qual o significado do fogo nessa história?
Penso que tenha a ver com esse sentimento de frustração. Não saber o que está fazendo, a maneira como cada um leva sua vida, sabendo que há algo errado, mas, ao mesmo tempo, sem identificar o que fazer para mudar. Há uma ideia de que, mesmo que você mude, nada ao seu redor será diferente. Esta frustração está concentrada na atitude da protagonista em colocar fogo nas coisas – algo que ela faz bastante durante o filme. Pra mim, tem a ver com fazer as coisas explodirem, em destruir e começar de novo.

 

Como foi o processo de escolha e de trabalho com as protagonistas Natalia Belitski e Luisa-Celine Gaffron?
As duas são completamente diferentes, como atrizes e como personagens. O modo como trabalham também, e o espírito que agregaram ao projeto. Natalia, que faz a Julie, fez muito teatro antes de se envolver com cinema e televisão. Tem uma presença forte em cena, é alguém que se dedica muito, que chega ao set preparada, tendo estudado o papel e suas referências. É o tipo de atriz que exige pouco de mim, como se não precisasse fazer nada por ela, pois tem tudo em sua cabeça. Minha orientação se resumia a apontar, de tempos em tempos, que estava no caminho certo. Sabe, apenas dizia: “é isso aí”, ou “perfeito” (risos). É muito independente na maneira como escolhe como trabalhar. Claro, volta e meia era preciso discutir uma cena em particular, sempre me perguntava qual a direção que gostaria de seguir, mas em nenhum momento disse a ela como deveria atuar. Acho que nem gostaria se assim fizesse, até porque não precisa desse tipo de orientação. Foi uma relação de muito respeito.

A diretora Elisa Mishto e Robledo Milani, editor-chefe do Papo de Cinema, em conversa por zoom

É um jeito peculiar de trabalhar. Imagino que com a Luisa-Celine tenha sido diferente, certo?
Nossa, com a Lulu foi exatamente o oposto. Ela havia recém saído do curso de atuação, estava completamente crua, pronta para absorver tudo que era posto ao seu redor. Havia feito alguns filmes independentes, projetos para televisão, mas participações pequenas, imagino. Esse foi seu primeiro trabalho de maior destaque. Não tinha experiência, portanto, com cinema. É algo raro de se ter no set, alguém tão disponível e desprovida de influências, principalmente no cinema alemão. Por vezes poderia se mostrar profunda e compenetrada, muito séria, mas no momento seguinte dar uma risada completamente espontânea e despreocupada, contagiante, sabe? Algo até mesmo ingênuo. Ia o tempo todo de um extremo a outro. Às vezes parecia uma criança, mas um minuto depois surgia como uma rainha. Adoro trabalhar com alguém assim, é estimulante.

 

Quais desses dois métodos lhe atrai mais?
As duas exigiram processos distintos, o que pra mim, como realizadora, foi desafiador, mas também um presente. Penso que o trabalho de direção não é ter um único jeito de ser e agir e impor essa forma de pensar aos atores. É mais sobre saber ouvir e entender o que querem e precisam de você. Você precisa saber se adaptar. Ainda que para alguns esse nível de exigência seja completo, para outros tudo o que será preciso é que os deixem em paz e permita que façam do seu modo.

 

Conhece o Brasil?
Nunca. O que é uma lástima. É mais uma coisa a se lamentar por causa da pandemia, pois, se não fosse por ela, certamente teria viajado mais na divulgação do filme, e talvez ido até o Brasil. É algo que tenho vontade de fazer há muito tempo. Adoraria ter tido a oportunidade. 

Natalia Belitski em cena de “Garota Inflamável”

E o cinema brasileiro?
Acho que vou ser um pouco politicamente incorreta agora. Há uma parte do cinema feito na América do Sul que realmente amo, principalmente aquelas narrativas que envolvem uma abordagem sobre o realismo fantástico. É um tipo de cinema que você nunca tem certeza se o que está acontecendo é real ou parte da imaginação do protagonista. No entanto, para ser honesta, sou mais influenciada por diretores clássicos.

 

Poderia citar algumas dessas influências?
Alfred Hitchcock. Penso que é o meu diretor favorito. Adoro a maneira como ele contava suas histórias, mas também como conseguia transitar entre o mainstream e projetos independentes, bastante autorais. Conseguia, com seus filmes, levar o espectador até o limite, mas de uma maneira que o grande público compreendia. Os críticos de cinema conseguiam identificar elementos belíssimos nessas obras, mas a minha avó, caso fosse assisti-lo, também ficaria encantada. Era um verdadeiro talento ter tamanha habilidade. Era um gênio.

 

Como espera que o público daqui reaja ao teu filme?
Muita gente tem me perguntado isso, estou começando a ficar preocupada (risos). Brincadeiras à parte, acredito, sim, que cada país possui sua própria cultura e as maneiras de reagir a um determinado filme ou história podem ser diferentes. Depende, claro, de como são feitas essas apresentações, mas também das condições políticas e sociais de cada um. Acho que há maneiras de se contar histórias das quais me sinto mais próxima, principalmente ao sul do Mediterrâneo e América do Sul, onde se reconhece um certo tipo de beleza e de ironia, como se expor as emoções de um modo mais jovial. Minha conexão com esse tipo de audiência se dá de uma forma mais efetiva. Ainda que o oposto não seja necessariamente verdade (risos).

Elisa Mishto (camisa listrada) com equipe e elenco no set de “Garota Inflamável”

Afinal, sobre o que trata Garota Inflamável?
Garota Inflamável é sobre duas mulheres que estão enfrentando grandes desafios, estão questionando suas ideias a respeito do que os homens esperam delas e como uma mulher deve agir. Penso que as reações dos espectadores tem muito a ver com o comportamento dessas personagens. Algumas pessoas costumam ficar felizes e se sentem livres para se envolver com a história, enquanto outras agem como se um gatilho fosse disparado, sentindo-se afetadas num modo mais pessoal. Espero essas duas reações do público brasileiro.

(Entrevista feita por zoom, entre Brasil e Alemanha, em julho de 2022)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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