Ela é de Curitiba, ele de São Paulo. Ela tem 18 anos, ele 22. Ela está estreando como atriz, ele já fez até novela na Rede Globo. Tifanny Dopke e Giovanni de Lorenzi são os protagonistas de Ferrugem (2018), drama dirigido por Aly Muritiba que se consagrou como o grande vencedor do 46° Festival de Cinema de Gramado, conquistando os kikitos de Melhor Filme, Roteiro e Som na mostra competitiva de longas brasileiros. A história sobre adolescentes que não sabem muito bem como lidar após um vídeo íntimo de uma menina vazar nos grupos de whatsapp da escola é dividida em duas partes, e cada um destes jovens atores está à frente da ação nestes momentos: primeiro ela, depois ele. E para saber um pouco mais sobre como foi esse processo, tivemos um papo de cinema inédito e exclusivo com os dois durante a passagem deles pela Serra Gaúcha. E aproveitaram para comentar não apenas como entraram no projeto, mas também qual a mensagem que o filme irá deixar com o público. Confira!
Tifanny e Giovanni, vocês são os protagonistas de Ferrugem– um da Parte 1, outro da Parte 2. Como se envolveram com o filme?
Tifanny Dopke: Não tinha muita experiência com cinema – na verdade, nenhuma. Até então, havia feito apenas teatro musical no colégio. Era a única relação que tinha com a atuação. Acontece que moro em Curitiba, e houve um boca a boca de que estava ocorrendo um casting para um filme que seria feito na cidade. Foi o que me chamou atenção. Tentei mais para ver como é que era, porque nunca havia feito um. E acabou que virei protagonista (risos). Caiu meio que de paraquedas no meu colo.
Giovanni de Lorenzi: Esse projeto também caiu nos meus braços como uma grande surpresa. Ele já estava acontecendo. E por mais que tivesse feito alguns trabalhos como ator, não conhecia o cenário cultural curitibano. Era tudo novo para mim. Não fazia nem dois anos que estava na área artística. Não tinha conhecimento de nada. Cair nesse projeto e me envolver com essa turma de Curitiba foi uma experiência maravilhosa, principalmente por conta da receptividade. O elenco e a equipe foram os melhores que já trabalhei em termos de sintonia, de estarmos todos uns pelos outros. Afinal, estávamos tratando de um assunto tóxico. Mergulhar nisso foi muito difícil.
Vocês formaram uma grande família durante as filmagens, não? Como foram os bastidores?
TD: Tivemos um mês de ensaios. E, durante esse período, nosso preparador, o René Guerra – que foi ótimo – sempre dizia: “é importante deixar claro que ninguém aqui tem papel escolhido ainda”. Eram 20 pessoas, mais ou menos. “Dentro do que vocês fizerem aqui, e da conexão que tiverem, e da harmonia que for estabelecida, é que vamos decidir quem vai ser o que”. Isso foi essencial para o que estávamos buscando, pois além de estarmos atrás dessa sintonia que permitisse criar uma coisa juntos, desde o início não houve disputa, um querendo passar pelo outro. Foi uma família, mesmo. Estava todo mundo comprometido para que desse certo. Foi a Família Ferrugem (risos).
Vocês chegaram a cogitar a possibilidade de fazer outros personagens?
GL: Não rolava muito ter preferência por um ou outro personagem. Até porque fugia do nosso controle. Rolava algumas coisas, no entanto, que já meio que nos direcionava. Por exemplo, tem um momento muito lindo, com o Pedrinho (Pedro Inoue, que faz o personagem Normal). Estávamos fazendo um exercício de repetição. Era o René Guerra que estava conduzindo a atividade. Eu era o ator paulista totalmente estranho, inserido naquele cenário curitibano. Tinha esse estranhamento. Não havia uma rixa, só não nos conhecíamos. Acontece que, durante essa repetição, chegamos na palavra ‘teatro’. Ficamos repetindo, e no olhar dele ia aparecendo as concepções dele em relação ao termo. E comigo a mesma coisa. Em algum lugar, a gente se encontrou. Deu um clique. Foi quando falei: “poxa, bem que a gente podia ser o Renet e o Normal, ou o Normal e o Renet”. E acabou acontecendo.
Vocês recém saíram da adolescência. Chegaram a enfrentar problemas similares aos vividos no filme?
TD: De perto, não. Mas conheci meninas que passaram por isso, até mesmo amigas. Dentro desse ambiente escolar, estamos sempre próximos dessa realidade.
GL: Tive uma experiência tensa, no colégio. O vídeo de uma menina vazou e foi um escândalo. Só que na época eu era meio desligado. Nem tinha celular, para ter ideia. Então, fiquei meio a par disso. Mas vi acontecer, mesmo sem entender bem o que estava passando. Lembro que ela acabou saindo da escola. Foi algo que, de um jeito ou de outro, ficou marcado na minha vida, mas que só fui entender ao fazer esse filme. Quando compreendi, de fato, a gravidade da situação.
A Tati, no filme, acaba sucumbindo ao escândalo, não consegue se defender e se impor. Com toda a discussão de hoje nas redes sociais sobre feminismo, homofobia, vocês acreditam que esses debatem não tem chegado ao ambiente escolar?
GL: Acho que a discussão chega, sim. Tanto é que saí do colégio faz uns quatro anos, e lembro que naquela época isso já era discutido. Nos últimos anos, no entanto, o boom foi maior, no sentido desses assuntos virem mais à tona. Acho que o público jovem tem discutido. As ferramentas para se defender desses ataques, no entanto, é que ainda estão faltando.
Como foi trabalhar com esses personagens e torná-los simpáticos ao público? Como possibilitar essa identificação?
TD: Acho que a principal coisa para fazer o público gostar do seu personagem é defender a realidade dele, a causa que está envolvido, o que está vivendo. Trabalhamos muito isso, foi o nosso ponto de começo.
GL: Tem personagem que é difícil de defender. São falhos, mas, acima de tudo, são humanos. Então, é fundamental entender o que estão fazendo. A partir do momento em que a gente julga, enquanto ator que vai fazer aquele personagem, criamos uma barreira. Isso nos impossibilita de vivê-los em sua plenitude. Então, em relação ao Renet, era possível entender as motivações dele. Estava tudo ali, na família, com esses problemas de comunicação, a questão dele com o feminino, com a mãe tendo saído de casa, o pai não permitindo que ela se aproxime. E quando ela volta, ainda por cima grávida, para ele é surreal. Então, de partida traz algo pesado consigo. Isso aumenta a curiosidade de quem ele é e dos por quês que carrega. O filme vai revelando estes motivos. Não diria que é possível simpatizar com ele, mas dá para se aproximar e dizer “puxa, em algum momento já pensei mais ou menos assim”.
Como vocês tem acompanhado a repercussão do Ferrugem no exterior?
TD: Estive no Festival de Sundance, nos Estados Unidos. E há algumas semanas estive também na Itália, no Festival de Cinema de Giffoni. Foram duas experiências incríveis, e muito diferentes. Sundance é grandiosíssimo, além de muito frio. Lá foi a primeira vez que assisti ao filme. A nossa plateia tinha um olhar bem crítico, com muitos cineastas. Eram pessoas que entendiam não só da parte dramática, mas também dos detalhes técnicos, da montagem. Já na Itália foi outra pegada, pois era um evento voltado para adolescentes. O público tinha, em média, 16 anos. E o mais surpreendente é que faziam os mesmos comentários do pessoal de Sundance. Foi impressionante. Eram jovens do mundo inteiro, de mais de 100 países diferentes. Ver todas aquelas culturas, diversas realidades, envolvidas pelo nosso filme, foi muito especial. O Ferrugem possibilitou que ficássemos todos conectados, ali, numa mesma sala de cinema. Isso foi maravilhoso.
Sundance é a um passo de Hollywood. Começar ali imagino que tenha sido um grande desafio.
TD: Com certeza. Mas só tivemos comentários ótimos. Todo mundo que vinha falar conosco afirmava ter adorado o filme. Conseguimos uma conexão muito boa por lá. Até hoje, volta e meia surgem pessoas que nos procuram pelas redes sociais que afirmam terem assistido ao filme em Sundance. Já vieram vários pedidos querendo saber quando irá estrear nos Estados Unidos, de gente que quer rever. Pelo jeito, o impacto que deixamos por lá foi muito legal.
Após tantos festivais, Ferrugem está, enfim, chegando aos cinemas brasileiros. Como vocês esperam que será a repercussão por aqui?
GL: É uma das coisas que me deixam nervoso. Recém vi o filme pela primeira vez, em Gramado. Não fui à Sundance, nem a nenhum outro festival, pois estava trabalhando. Queria muito ter ido, para viver essas experiências. Mas a estreia é aquilo, né? Vou me repetir, mas é preciso que fique claro que este é um projeto que aponta para a responsabilidade que temos sobre o que fazemos. E a coragem desse filme em falar sobre esse assunto! Porém, às vezes impacta o público em lugares que você nem havia pensado. Foge do seu controle. Vira um filho que você põe no mundo, dá uns passinhos e, quando percebe, já está grande. Às vezes me fazem observações que, quando escuto, fico pensando: “nossa, mas não filmei isso”. Depois, vou ver, e realmente está lá. É impossível saber o que esperar. Mas acho que vai ser bom. A gente tem responsabilidade, sim, pelo que fazemos na internet. O anonimato dá uma falsa segurança, a gente acha que pode tudo, que é dono da verdade, e precisamos aprender que é um convívio social como em qualquer outro lugar. Você tem responsabilidades, sim. Pelo que você diz e compartilha. Essa é a mensagem.
(Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2018)
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